30.1.05
A Motivação para Votar e A Defesa da Democracia
O artigo de J. Pacheco Pereira de 5ª feira passada, no Público, que li de relance, fala numa ausência de motivação para votar no próximo dia 20 de Fevereiro, por parte de significativa quota de social-democratas: militantes, simpatizantes ou tradicionais eleitores do PSD, realidades nem sempre semelhantes, por vezes mesmo, bem diferentes, tão fluidas andam as delimitações dos enquadramentos ideológicos dos Partidos, nos nossos pós-modernos tempos.
Prova disso é a anunciada intenção de Freitas do Amaral em votar no PS, aconselhando com insistência os portugueses a fazê-lo, em artigo publicado na revista Visão, também da passada 5ª feira, dia 27-01-2005.
Não serei eu a criticá-lo, porque o voto é livre e ninguém pode ficar eternamente amarrado a uma presumida pertença ideológica uma vez afirmada, num dado contexto temporal e sociológico.
Há muito que passou o tempo do PREC e da Aliança Democrática e há muito também que caíram os regimes marcados por férrea orientação ideológica que geravam fidelidades e alinhamentos igualmente férreos por todo o mundo.
As diferenças desse tipo esbateram-se tanto que deixaram de ser importantes. Quase só por razões históricas elas se mantêm. Seria até conveniente provocar uma reformulação das doutrinas político-ideológicas, com o seu correspondente realinhamento partidário, como forma de desobscurecer os equivocados espíritos de alguns actuais dirigentes partidários.
No caso da declaração de Freitas do Amaral, pensarão muitos que se trate de uma inesperada inclinação esquerdista, após tantos anos de militância na Direita e no Centro-Direita.
Na verdade, Freitas do Amaral já há uns bons anos que se aproximara do Partido Socialista, na sequência da sua derrota nas eleições para a Presidência da República, em 1986, no confronto com Mário Soares, apesar do aparente paradoxo da ligação dos factos.
Esta inflexão de FA terá, porventura, sido estimulada pelo desentendimento ocorrido quanto à responsabilidade das contas da sua campanha eleitoral.
Sem dados bastantes para avaliar o conflito, parece-me que foram Cavaco Silva e o PSD os que agiram mal ao divorciarem-se dessa responsabilidade, deixando ao candidato derrotado, Freitas do Amaral, a incumbência de sozinho arcar com o pagamento das dívidas da campanha.
As solidariedades, quando se assumem, valem em todas as circunstâncias, no êxito ou no desaire. Este parece-me ser o princípio irrecusável.
Poucos anos depois, seria pela mão de Guterres, Primeiro-Ministro de Portugal, que Freitas do Amaral seria convidado para desempenhar o alto cargo de Presidente da Assembleia Geral da Nações Unidas, em Nova Iorque.
De então para cá, as ligações e as convergências de posições não cessaram de se reforçar, apenas perturbadas pela deserção de Guterres, em Dezembro de 2001, na sequência dos maus resultados eleitorais do PS nas eleições autárquicas.
Por momentos, Freitas do Amaral inclinou-se novamente para Durão Barroso e para o PSD, para logo depois recomeçar o seu percurso divergente, acentuado com a invasão do Iraque pelas forças armadas dos EUA, sem mandato da ONU, acção que Durão Barroso apoiou e Freitas do Amaral categoricamente condenou.
Para muita gente, não obstante, a aproximação do ex-líder do CDS aos Socialistas continua a parecer excessiva e contraditória com as posições que aquele durante tantos anos defendeu. Mas sem dúvida que a atitude é legítima e bem ponderada, porque Freitas do Amaral sempre foi uma pessoa que estuda muito bem as opções a tomar e suas implicações, sendo caracterizado como alguém que age de forma muito maduramente reflectida.
E, além do mais, quem sabe se não alimentará FA ainda uma leve esperança de vir a ser apoiado, nas próximas eleições presidenciais, de 2006, pelo Partido Socialista, caso a figura de Guterres, para tal desígnio, não se imponha ou ele venha a desistir de se apresentar como candidato, em definitiva opção por carreira política internacional ?
Quanto à relutância da família social-democrática em apoiar o PSD a 20 de Fevereiro, ela radica na fraca motivação que lhe deram, tanto Santana Lopes como Durão Barroso, à frente de Governos de pendor muito mais liberal que social-democrático, sempre com maior preocupação pelos défices orçamentais e pela competitividade das Empresas, do que por temas relacionados com a coesão social que estas deveriam também promover, como corolário da sua função social.
Acresce que a questão da Competitividade das Empresas aparece, no discurso de altos responsáveis do Governo e do PSD, por regra, encarada na sua visão mais redutora, quase só concentrada na diminuição de direitos e de proventos dos trabalhadores.
Deveriam antes antender a outros factores, esses sim, bem mais relevantes para essa desejada Competitividade, como sejam, a organização eficiente do trabalho, o aproveitamento dos recursos e aptidões existentes e não plenamente explorados, a formação profissional do corpo técnico das Empresas, a motivação dos trabalhadores, pela sua associação e participação nos objectivos previamente formulados e divulgados, uma maior equidade no estatuto remuneratório, prevenindo desnivelamentos exagerados, tudo coisas que, em geral, nunca são sequer mencionadas, muito menos praticadas, pelos habituais arautos do hiperbolizado conceito da Competitividade, a cujo cumprimento se acham, por regra, eximidos, remetendo para os mais fracos as nefastas consequências da sua quebra.
Esta prática constante dos Governos do PSD, agora coligado com os conservadores do Partido Popular, faz esmorecer o desejo e o sentido do voto dos social-democratas, que, no momento actual, se acham, na verdade, «desrepresentados» social e politicamente.
Seria certamente mais honesto e um factor de clarificação do universo mental em que se vive, se os dirigentes do PSD declarassem que deixaram de se inspirar no antigo modelo social-democrático europeu, visando hoje uma outra doutrina, se doutrina há, mais baseada na facilidade e no crescimento dos negócios, nos elevados salários e prémios dos Gestores, do que em qualquer forma de desenvolvimento económico criadora de equilíbrio social, que porventura até reputem nociva ou contraproducente para a livre florescência dos negócios.
De facto, parece ser esta a noção que os dirigentes do PSD deixam perceber aos seus tradicionais eleitores, compreensivelmente desmotivados para apoiarem uma prática governativa que ostensivamente os ignora nos objectivos que persegue.
Aliado a este problema de orientação doutrinária está o da fraca capacidade demonstrada pelos actuais dirigentes do PSD para desempenhar os altos cargos a que ascenderam.
Aqui chegados, muitos por processos nada recomendáveis e alguns mesmo deveras reprováveis, o seu desempenho revelou-se uma decepção, de uma mediocridade técnica surpreendente, nivelado pela baixa categoria ética de que emergiram, com a complacência, se não com a conivência, de altos e antigos dirigentes, alguns tidos como referências do Partido, coisa que profundamente os desacredita e lhes retira a autoridade de que se supõem investidos, para concitar os apoios e as adesões de que o PSD necessita, de forma vital nos períodos eleitorais e de forma substancial nos restantes.
E aqui entramos num caso muito lamentável, recentemente ocorrido no PSD, que foi o facto de este ter entregue a tarefa da elaboração do seu Programa de Governo a uma entidade exterior ao próprio partido, sob coordenação de alguém que nem vínculo lhe tem.
Se os Partidos já não se ocupam com a elaboração de um Programa de Governo, nem com a coerência da Doutrina que supostamente os orienta, nem com o escrúpulo ético dos seus candidatos a Deputados ou a outros cargos de nomeação política, é caso para se dizer então que a Política, como actividade digna e nobre, acabou para os cidadãos honrados, antes se tornou propriedade cativa de grupos de interesses e seus representantes, viciados nos jogos de intercâmbio de poder, de conspiração palaciana permanente, apenas motivados pelo acesso e manutenção do almejado Poder, neste caso esvaziado de sentido social, ético ou do que quer que seja que não implique directamente o exercício dos cobiçados lugares de mando.
Este ambiente, que actualmente já se encontra bem ilustrado no agitado e corrompido meio político-partidário português, se, num prazo que já não poderá ser longo, não for corrigido, erradicado, acabará por afastar grande parte dos seus melhores cidadãos e cada vez mais acentuará o seu carácter nocivo, gerando inexoravelmente a indiferença e o alheamento da Política justamente daquela parte de cidadãos ainda não moralmente degradados para o seu exercício.
Ficará assim preparado o terreno para qualquer aventura ou degenerescência política, desfechos pouco consentâneos com os ideais democráticos, tantas vezes proclamados e outras tantas pervertidos, pelos que se julgam ao abrigo das consequências da venalidade das acções que continua e ordinariamente têm praticado.
Quousque tandem ... e uma vez mais : Res non verba.
AV_Lisboa, 30 de Janeiro de 2005
Prova disso é a anunciada intenção de Freitas do Amaral em votar no PS, aconselhando com insistência os portugueses a fazê-lo, em artigo publicado na revista Visão, também da passada 5ª feira, dia 27-01-2005.
Não serei eu a criticá-lo, porque o voto é livre e ninguém pode ficar eternamente amarrado a uma presumida pertença ideológica uma vez afirmada, num dado contexto temporal e sociológico.
Há muito que passou o tempo do PREC e da Aliança Democrática e há muito também que caíram os regimes marcados por férrea orientação ideológica que geravam fidelidades e alinhamentos igualmente férreos por todo o mundo.
As diferenças desse tipo esbateram-se tanto que deixaram de ser importantes. Quase só por razões históricas elas se mantêm. Seria até conveniente provocar uma reformulação das doutrinas político-ideológicas, com o seu correspondente realinhamento partidário, como forma de desobscurecer os equivocados espíritos de alguns actuais dirigentes partidários.
No caso da declaração de Freitas do Amaral, pensarão muitos que se trate de uma inesperada inclinação esquerdista, após tantos anos de militância na Direita e no Centro-Direita.
Na verdade, Freitas do Amaral já há uns bons anos que se aproximara do Partido Socialista, na sequência da sua derrota nas eleições para a Presidência da República, em 1986, no confronto com Mário Soares, apesar do aparente paradoxo da ligação dos factos.
Esta inflexão de FA terá, porventura, sido estimulada pelo desentendimento ocorrido quanto à responsabilidade das contas da sua campanha eleitoral.
Sem dados bastantes para avaliar o conflito, parece-me que foram Cavaco Silva e o PSD os que agiram mal ao divorciarem-se dessa responsabilidade, deixando ao candidato derrotado, Freitas do Amaral, a incumbência de sozinho arcar com o pagamento das dívidas da campanha.
As solidariedades, quando se assumem, valem em todas as circunstâncias, no êxito ou no desaire. Este parece-me ser o princípio irrecusável.
Poucos anos depois, seria pela mão de Guterres, Primeiro-Ministro de Portugal, que Freitas do Amaral seria convidado para desempenhar o alto cargo de Presidente da Assembleia Geral da Nações Unidas, em Nova Iorque.
De então para cá, as ligações e as convergências de posições não cessaram de se reforçar, apenas perturbadas pela deserção de Guterres, em Dezembro de 2001, na sequência dos maus resultados eleitorais do PS nas eleições autárquicas.
Por momentos, Freitas do Amaral inclinou-se novamente para Durão Barroso e para o PSD, para logo depois recomeçar o seu percurso divergente, acentuado com a invasão do Iraque pelas forças armadas dos EUA, sem mandato da ONU, acção que Durão Barroso apoiou e Freitas do Amaral categoricamente condenou.
Para muita gente, não obstante, a aproximação do ex-líder do CDS aos Socialistas continua a parecer excessiva e contraditória com as posições que aquele durante tantos anos defendeu. Mas sem dúvida que a atitude é legítima e bem ponderada, porque Freitas do Amaral sempre foi uma pessoa que estuda muito bem as opções a tomar e suas implicações, sendo caracterizado como alguém que age de forma muito maduramente reflectida.
E, além do mais, quem sabe se não alimentará FA ainda uma leve esperança de vir a ser apoiado, nas próximas eleições presidenciais, de 2006, pelo Partido Socialista, caso a figura de Guterres, para tal desígnio, não se imponha ou ele venha a desistir de se apresentar como candidato, em definitiva opção por carreira política internacional ?
Quanto à relutância da família social-democrática em apoiar o PSD a 20 de Fevereiro, ela radica na fraca motivação que lhe deram, tanto Santana Lopes como Durão Barroso, à frente de Governos de pendor muito mais liberal que social-democrático, sempre com maior preocupação pelos défices orçamentais e pela competitividade das Empresas, do que por temas relacionados com a coesão social que estas deveriam também promover, como corolário da sua função social.
Acresce que a questão da Competitividade das Empresas aparece, no discurso de altos responsáveis do Governo e do PSD, por regra, encarada na sua visão mais redutora, quase só concentrada na diminuição de direitos e de proventos dos trabalhadores.
Deveriam antes antender a outros factores, esses sim, bem mais relevantes para essa desejada Competitividade, como sejam, a organização eficiente do trabalho, o aproveitamento dos recursos e aptidões existentes e não plenamente explorados, a formação profissional do corpo técnico das Empresas, a motivação dos trabalhadores, pela sua associação e participação nos objectivos previamente formulados e divulgados, uma maior equidade no estatuto remuneratório, prevenindo desnivelamentos exagerados, tudo coisas que, em geral, nunca são sequer mencionadas, muito menos praticadas, pelos habituais arautos do hiperbolizado conceito da Competitividade, a cujo cumprimento se acham, por regra, eximidos, remetendo para os mais fracos as nefastas consequências da sua quebra.
Esta prática constante dos Governos do PSD, agora coligado com os conservadores do Partido Popular, faz esmorecer o desejo e o sentido do voto dos social-democratas, que, no momento actual, se acham, na verdade, «desrepresentados» social e politicamente.
Seria certamente mais honesto e um factor de clarificação do universo mental em que se vive, se os dirigentes do PSD declarassem que deixaram de se inspirar no antigo modelo social-democrático europeu, visando hoje uma outra doutrina, se doutrina há, mais baseada na facilidade e no crescimento dos negócios, nos elevados salários e prémios dos Gestores, do que em qualquer forma de desenvolvimento económico criadora de equilíbrio social, que porventura até reputem nociva ou contraproducente para a livre florescência dos negócios.
De facto, parece ser esta a noção que os dirigentes do PSD deixam perceber aos seus tradicionais eleitores, compreensivelmente desmotivados para apoiarem uma prática governativa que ostensivamente os ignora nos objectivos que persegue.
Aliado a este problema de orientação doutrinária está o da fraca capacidade demonstrada pelos actuais dirigentes do PSD para desempenhar os altos cargos a que ascenderam.
Aqui chegados, muitos por processos nada recomendáveis e alguns mesmo deveras reprováveis, o seu desempenho revelou-se uma decepção, de uma mediocridade técnica surpreendente, nivelado pela baixa categoria ética de que emergiram, com a complacência, se não com a conivência, de altos e antigos dirigentes, alguns tidos como referências do Partido, coisa que profundamente os desacredita e lhes retira a autoridade de que se supõem investidos, para concitar os apoios e as adesões de que o PSD necessita, de forma vital nos períodos eleitorais e de forma substancial nos restantes.
E aqui entramos num caso muito lamentável, recentemente ocorrido no PSD, que foi o facto de este ter entregue a tarefa da elaboração do seu Programa de Governo a uma entidade exterior ao próprio partido, sob coordenação de alguém que nem vínculo lhe tem.
Se os Partidos já não se ocupam com a elaboração de um Programa de Governo, nem com a coerência da Doutrina que supostamente os orienta, nem com o escrúpulo ético dos seus candidatos a Deputados ou a outros cargos de nomeação política, é caso para se dizer então que a Política, como actividade digna e nobre, acabou para os cidadãos honrados, antes se tornou propriedade cativa de grupos de interesses e seus representantes, viciados nos jogos de intercâmbio de poder, de conspiração palaciana permanente, apenas motivados pelo acesso e manutenção do almejado Poder, neste caso esvaziado de sentido social, ético ou do que quer que seja que não implique directamente o exercício dos cobiçados lugares de mando.
Este ambiente, que actualmente já se encontra bem ilustrado no agitado e corrompido meio político-partidário português, se, num prazo que já não poderá ser longo, não for corrigido, erradicado, acabará por afastar grande parte dos seus melhores cidadãos e cada vez mais acentuará o seu carácter nocivo, gerando inexoravelmente a indiferença e o alheamento da Política justamente daquela parte de cidadãos ainda não moralmente degradados para o seu exercício.
Ficará assim preparado o terreno para qualquer aventura ou degenerescência política, desfechos pouco consentâneos com os ideais democráticos, tantas vezes proclamados e outras tantas pervertidos, pelos que se julgam ao abrigo das consequências da venalidade das acções que continua e ordinariamente têm praticado.
Quousque tandem ... e uma vez mais : Res non verba.
AV_Lisboa, 30 de Janeiro de 2005
24.1.05
Os Senadores de Portugal e o Futuro
«Car ce n’est pas assez d’avoir l’esprit bon, mais le principal est de l’appliquer bien».
René Descartes, Discours de la Méthode, Leyde, 1636.
Esperei, como muitos portugueses, a noite da passada 2ª feira, dia 17-01-2005, com intensa curiosidade, para ver o anunciado programa «Prós e Contra» que iria debater o tema « O Rumo do País e o Futuro da Democracia», contando em cena com quatro dos chamados Senadores da Política Portuguesa : Adriano Moreira, Mário Soares, Pinto Balsemão e Freitas do Amaral, por ordem etária decrescente, se não erro.
A decepção foi, no entanto, enorme, de tal forma, que só resisti até ao primeiro intervalo. Disseram-me que no final se tornara mais interessante e algumas coisas relevantes foram lá ditas, como aquela de o Estado ter gasto o ano passado 50 milhões de contos, cerca de 250 milhões de euros, em trabalhos de consultoria requisitados a entidades externas.
Quer dizer : o Estado, apesar de toda a sua imensa máquina, com uma vasta Administração Pública, onde supostamente se encontram muitos corpos de saber especializado, com técnicos superiores qualificados, ainda assim, teve de recorrer a serviços de Empresas de Consultoria, privadas, para desenvolver os estudos e os trabalhos de que correntemente necessita.
Como se consegue justificar este tão alto dispêndio de verbas, numa altura em que se pede contenção em todo o lado, e por que não pode a Administração Pública, com os seus Serviços Especializados encarregar-se desses trabalhos ?
Eis uma pergunta que qualquer cidadão fará e a que o Estado deveria responder. Ignoro quais tenham sido os comentários que lá no programa se expenderam ante tão desconfortável situação.
Até à parte em que permaneci em frente do televisor, nada ou muito pouco do que aquelas quatro figuras disseram me agradou.
Reconheço que são pessoas com saber, currículo político e, nalguns casos, académico, de grande relevância, nomeadamente, nos casos de Adriano Moreira e Freitas do Amaral, ambos Professores Universitários de reconhecidos méritos e com larga obra publicada.
Os outros dois Senadores, Mário Soares e Francisco Balsemão, têm currículo predominantemente político, sendo que este último, destacado empresário da Comunicação Social, foi o fundador do Expresso, semanário que terá poderosamente contribuído, nos seus 32 anos de existência, para a formação política de várias gerações de Portugueses, cabendo-lhe, também aqui, papel de relevo, merecedor de geral reconhecimento.
Não obstante, como já nos advertia o distante, mas mui arguto, René Descartes :
« Não basta ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também das maiores virtudes ; e os que não caminham senão muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o recto trilho, do que aqueles que correm, mas dele se afastam ».
Na verdade, chega a ser confrangedor ouvir estas e outras pessoas, que, ao longo dos trinta e um anos da nossa renovada vida democrática, ocuparam e desempenharam os mais altos cargos do Estado, salvo Adriano Moreira, que teve uma passagem mais curta pelo Parlamento e pela direcção do Partido do Centro Democrático Social, ainda assim, relevante, falando do grau de degradação a que chegámos, nos vários planos em que analisemos a situação do país, como se eles com ela nada tivessem que ver.
Foram eles e não outros que aqui nos conduziram, que nos inculcaram a bondade das políticas traçadas, sozinhos, em coligação ou em oposição uns aos outros, foram sempre eles que intervieram na escolha dos nossos destinos dos últimos trinta anos.
Os resultados medíocres das políticas que defenderam e inculcaram estão agora à vista, ainda que os protagonistas actuais sejam outros, por sinal, menos preparados, intelectual e eticamente, mas, muitos deles, são até da sua escolha ou apadrinhamento.
Como podem falar com tanto desapego, sobretudo Soares e Balsemão, e mais que todos, Soares, que desde Abril de 1974, anda comprometido na vida política da Nação, tendo desempenhado já quase todos os cargos de notoriedade existentes : Ministro de Estado, Deputado, Ministro dos Negócios Estrangeiros, Primeiro-Ministro, Presidente da República e Deputado do Parlamento Europeu, alguns deles até, por diversas vezes, como podem deixar de sentir-se altamente responsáveis pela degradação atingida ?
É certo que todos nós, uma vez ou outra, votámos nalgum deles e por aí também, parcialmente, nos corresponsabilizámos, mas foram eles que desempenharam os cargos e que tomaram as decisões, ainda que de forma legítima. Não é aceitável que agora ou relativizem o mal ou o atribuam aos restantes intervenientes.
Deveriam ser eles os primeiros a assumir a sua culpa maioritária, pedindo desculpa, publicamente, ao povo português pelos fracos resultados da sua intervenção na vida política da Nação.
A maneira como, sobretudo, Soares e Freitas falam merece os maiores reparos, porque durante os anos da sua dourada proeminência política, sempre nos apresentaram como boas as políticas que praticavam, as opções que tomavam.
Se hoje ainda continuam interessados em intervir politicamente não é isso que se torna condenável, mas a sua percebida tentativa de desresponsabilização na crise em que há vários anos já encalhámos.
Daí que a nossa ansiada regeneração não possa ser desencadeada por eles, nem por uma legião de outros actores políticos, players, no moderno falar dos gestores «nacionais», muito afeitos ao imaginado anglicismo nobilitante, mas apenas por aqueles que conservam a honradez, a competência e a autoridade de, em devido tempo, terem alertado para os erros e desacertos dos caminhos que então trilhávamos.
Só destes e de uma multidão anónima, mas capaz, de descomprometidos da balbúrdia institucionalizada se poderá esperar a ansiada regeneração nacional, outra vez como no século dezanove, após as guerras e golpes contínuos em que quase metade desse século, para a nossa empobrecida terra, se consumiu.
Nunca poderão ser os mesmos que nos trouxeram a este envergonhado ponto de desenvolvimento económico, social, científico e cultural, a proporem-se a conduzir-nos ao caminho da redenção. Poderão certamente nela colaborar, mas nunca deverão ser de novo os condutores, os arautos da nova Esperança.
Se nisso consentirmos, nós todos, povo português, velha Nação desta Europa transfigurada e ameaçada por múltiplos perigos, ainda não convenientemente apercebidos, estaremos a iludir-nos mais uma vez e por tal pagaremos caro num qualquer futuro decrépito, se, acaso até lá, subsistirmos como tal.
Vana est sine viribus ira / Vã é a ira sem a força.
AV_Lisboa, 23 de Janeiro de 2005
René Descartes, Discours de la Méthode, Leyde, 1636.
Esperei, como muitos portugueses, a noite da passada 2ª feira, dia 17-01-2005, com intensa curiosidade, para ver o anunciado programa «Prós e Contra» que iria debater o tema « O Rumo do País e o Futuro da Democracia», contando em cena com quatro dos chamados Senadores da Política Portuguesa : Adriano Moreira, Mário Soares, Pinto Balsemão e Freitas do Amaral, por ordem etária decrescente, se não erro.
A decepção foi, no entanto, enorme, de tal forma, que só resisti até ao primeiro intervalo. Disseram-me que no final se tornara mais interessante e algumas coisas relevantes foram lá ditas, como aquela de o Estado ter gasto o ano passado 50 milhões de contos, cerca de 250 milhões de euros, em trabalhos de consultoria requisitados a entidades externas.
Quer dizer : o Estado, apesar de toda a sua imensa máquina, com uma vasta Administração Pública, onde supostamente se encontram muitos corpos de saber especializado, com técnicos superiores qualificados, ainda assim, teve de recorrer a serviços de Empresas de Consultoria, privadas, para desenvolver os estudos e os trabalhos de que correntemente necessita.
Como se consegue justificar este tão alto dispêndio de verbas, numa altura em que se pede contenção em todo o lado, e por que não pode a Administração Pública, com os seus Serviços Especializados encarregar-se desses trabalhos ?
Eis uma pergunta que qualquer cidadão fará e a que o Estado deveria responder. Ignoro quais tenham sido os comentários que lá no programa se expenderam ante tão desconfortável situação.
Até à parte em que permaneci em frente do televisor, nada ou muito pouco do que aquelas quatro figuras disseram me agradou.
Reconheço que são pessoas com saber, currículo político e, nalguns casos, académico, de grande relevância, nomeadamente, nos casos de Adriano Moreira e Freitas do Amaral, ambos Professores Universitários de reconhecidos méritos e com larga obra publicada.
Os outros dois Senadores, Mário Soares e Francisco Balsemão, têm currículo predominantemente político, sendo que este último, destacado empresário da Comunicação Social, foi o fundador do Expresso, semanário que terá poderosamente contribuído, nos seus 32 anos de existência, para a formação política de várias gerações de Portugueses, cabendo-lhe, também aqui, papel de relevo, merecedor de geral reconhecimento.
Não obstante, como já nos advertia o distante, mas mui arguto, René Descartes :
« Não basta ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também das maiores virtudes ; e os que não caminham senão muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o recto trilho, do que aqueles que correm, mas dele se afastam ».
Na verdade, chega a ser confrangedor ouvir estas e outras pessoas, que, ao longo dos trinta e um anos da nossa renovada vida democrática, ocuparam e desempenharam os mais altos cargos do Estado, salvo Adriano Moreira, que teve uma passagem mais curta pelo Parlamento e pela direcção do Partido do Centro Democrático Social, ainda assim, relevante, falando do grau de degradação a que chegámos, nos vários planos em que analisemos a situação do país, como se eles com ela nada tivessem que ver.
Foram eles e não outros que aqui nos conduziram, que nos inculcaram a bondade das políticas traçadas, sozinhos, em coligação ou em oposição uns aos outros, foram sempre eles que intervieram na escolha dos nossos destinos dos últimos trinta anos.
Os resultados medíocres das políticas que defenderam e inculcaram estão agora à vista, ainda que os protagonistas actuais sejam outros, por sinal, menos preparados, intelectual e eticamente, mas, muitos deles, são até da sua escolha ou apadrinhamento.
Como podem falar com tanto desapego, sobretudo Soares e Balsemão, e mais que todos, Soares, que desde Abril de 1974, anda comprometido na vida política da Nação, tendo desempenhado já quase todos os cargos de notoriedade existentes : Ministro de Estado, Deputado, Ministro dos Negócios Estrangeiros, Primeiro-Ministro, Presidente da República e Deputado do Parlamento Europeu, alguns deles até, por diversas vezes, como podem deixar de sentir-se altamente responsáveis pela degradação atingida ?
É certo que todos nós, uma vez ou outra, votámos nalgum deles e por aí também, parcialmente, nos corresponsabilizámos, mas foram eles que desempenharam os cargos e que tomaram as decisões, ainda que de forma legítima. Não é aceitável que agora ou relativizem o mal ou o atribuam aos restantes intervenientes.
Deveriam ser eles os primeiros a assumir a sua culpa maioritária, pedindo desculpa, publicamente, ao povo português pelos fracos resultados da sua intervenção na vida política da Nação.
A maneira como, sobretudo, Soares e Freitas falam merece os maiores reparos, porque durante os anos da sua dourada proeminência política, sempre nos apresentaram como boas as políticas que praticavam, as opções que tomavam.
Se hoje ainda continuam interessados em intervir politicamente não é isso que se torna condenável, mas a sua percebida tentativa de desresponsabilização na crise em que há vários anos já encalhámos.
Daí que a nossa ansiada regeneração não possa ser desencadeada por eles, nem por uma legião de outros actores políticos, players, no moderno falar dos gestores «nacionais», muito afeitos ao imaginado anglicismo nobilitante, mas apenas por aqueles que conservam a honradez, a competência e a autoridade de, em devido tempo, terem alertado para os erros e desacertos dos caminhos que então trilhávamos.
Só destes e de uma multidão anónima, mas capaz, de descomprometidos da balbúrdia institucionalizada se poderá esperar a ansiada regeneração nacional, outra vez como no século dezanove, após as guerras e golpes contínuos em que quase metade desse século, para a nossa empobrecida terra, se consumiu.
Nunca poderão ser os mesmos que nos trouxeram a este envergonhado ponto de desenvolvimento económico, social, científico e cultural, a proporem-se a conduzir-nos ao caminho da redenção. Poderão certamente nela colaborar, mas nunca deverão ser de novo os condutores, os arautos da nova Esperança.
Se nisso consentirmos, nós todos, povo português, velha Nação desta Europa transfigurada e ameaçada por múltiplos perigos, ainda não convenientemente apercebidos, estaremos a iludir-nos mais uma vez e por tal pagaremos caro num qualquer futuro decrépito, se, acaso até lá, subsistirmos como tal.
Vana est sine viribus ira / Vã é a ira sem a força.
AV_Lisboa, 23 de Janeiro de 2005
22.1.05
Reconsideração de Opinião
No texto anterior que aqui publiquei, falei de forma talvez demasiado severa sobre o caso da excessiva atenção, a meu ver, obviamente, dada ao filósofo José Gil, por parte da Comunicação Social. Admito, agora, que talvez o excessivo tenha estado do meu lado.
Mantenho, todavia, que a entrevista de José Gil à revista do Público, do passado domingo, carece de objectividade, de concretização, naquilo que pretende exprimir : um desencanto perante a actual vida social dos portugueses, que o autor atribui ao medo que ainda subsiste do tempo da Ditadura de Salazar. Coisa esquisita, se nos lembrarmos que voltámos a viver em liberdade, em 25 de Abril de 1974, e assim temos vivido desde então.
Depois daquela primeira entrevista, o coro de elogios que ouvi da Comunicação Social também me desagradou, porque cada vez mais coisas deste tipo, me soam a mimetismo cultural e ao mero desejo de não querer passar por dissonante.
Sempre que vejo alguém insistir na pesada herança, tanto tempo passado da saída de Salazar do Governo, no longínquo Verão de 1968, acho algo forçado, falho de imaginação e o citado autor, vezes de mais, repisa este tema. Pouco adiantaremos na compreensão das causas do nosso mal-estar, se continuarmos a explorar esse apagado trilho.
Creio que é mais que tempo de deixarmos de culpar Salazar pelos males de que hoje padecemos e antes questionar quem nos tem governado e orientado desde que aquele desapareceu. Algumas referidas chagas dos nossos persistentes males vemo-las hoje até agravadas.
Com efeito, em plena democracia, já outra vez adulta, maior de 21 anos, e depois de termos entrado na União Europeia, em Janeiro de 1986, descobre-se que nunca em Portugal se dedicaram tantas horas de atenção ao Futebol, que é bebido e sorvido nos canais televisivos, nos jornais diários, semanários, generalistas ou ditos de Desporto, que, na prática, quase só tratam de futebol, nas rádios, pública e privadas, em programas intermináveis, horas a fio, a desbobinar banalidades, inutilidades e outras inanidades verbais, sem aparente cansaço dos intervenientes nem dos patrocinadores. Perguntar-se-á se crêem que isso se passe por influência, ainda que oculta e distante, de um omnipotente Salazarismo, ainda que sem Salazar.
Curiosamente, diziam antigamente os intelectuais que era o Salazar que fomentava o interesse do futebol, para promover a alienação, subentendia-se, política e cultural, do povo português, que, assim mesmo, se tornava mais dócil de domar e incapaz de procurar uma alternativa ao regime político de então.
A par disso, o gosto do Fado, cantado de forma dolente, com letras fatalistas, reforçava essa mesma alienação, que, por seu turno, gerava o pretendido sentimento de conformação com a situação de falta de liberdade, como se tudo isso fora uma assumida forma de expiação de algum crime ou condenação colectiva, que tivesse atingido a antiga Nação, de bravos marinheiros e valentes guerreiros, aquela que outrora se batera nos campos de Aljubarrota e embarcara nas Naus e Caravelas, para desbravar esse imenso mar oceano que se perfilava ante seus ansiosos olhos. ( Esta contradição merece ser retomada noutra instância).
Entretanto, com este sentimento ambíguo, a respeito de José Gil, acontece que, a meio da semana, comprei o Jornal de Letras e nele encontro novo grande destaque a mais uma entrevista de JG, coisa que já me causava algum incómodo, pela sistemática referência elogiosa. Desta vez, porém, já me agradou mais o discurso de JG. Há mais objectividade nas suas afirmações e perde menos tempo com as sequelas do salazarismo, apesar de ainda lhes fazer referência.
Algumas suas observações acho-as certeiras, como a de que quase não há debate em Portugal : as pessoas conversam pouco sobre temas importantes e demasiado sobre futilidades, nomeadamente, sobre o futebol, que se tornou um tema esmagador de conversas informais entre nós. Isto, de facto, revela pouca imaginação, escasso interesse cultural ou puro receio de patentear opiniões ou crenças particulares, o que traduz também sentimento difuso de insegurança. Neste pormenor, há um incompreensível mistério que leva as pessoas a desaproveitar o ambiente de liberdade democrática e institucional em que há mais de trinta anos vivemos.
Esta última entrevista de JG ao Jornal de Letras tem passagens muito estimulantes, que justificarão várias exegeses futuras, algumas que até, aqui mesmo, procurarei desenvolver, nomeadamente, quando toca em temas como o paganismo muito presente na sociedade portuguesa, que, tradicionalmente, consideramos inequivocamente católica, a aparente falta de vocação dos portugueses para a Matemática, que JG atribui à nossa preferência pelo saber de síntese, em oposição ao de análise, coisa que fugimos de praticar, até ao tema da possibilidade de Portugal vir a desaparecer, como entidade cultural autónoma.
Este último parece-me deveras oportuno e muito necessário de reflectir, no momento que passa, dentro do enquadramento político e económico em que escolhemos viver, ao aderir à União Europeia, ainda que sem consulta específica ao povo para tão importante decisão histórica. Bem sei que, na altura, quase todos os Partidos a aprovavam, sendo de presumir o resultado positivo da afirmação popular. No entanto, julgo que a natureza da decisão justificava a consulta expressa do povo.
Valeria a pena aprofundar esta questão magna da nossa idiossincrasia, porque se trata de algo repetitivo, cíclico, na nossa História e que subitamente se agravou nos últimos anos, com o europeísmo inebriante das nossas elites elegantes e apressadas, nas suas constantes viagens de avião entre aeroportos cosmopolitas, a par de um reciclado iberismo, que desponta em certos meios, animado por equívocos culturais, protagonizados por quem desvaloriza o que profundamente desconhece.
Simultaneamente, retomei a leitura do livro « Portugal, Hoje – O Medo de Existir » de José Gil, que ganhou em mim um novo e surpreendente interesse, depois da primeira rápida e negativa impressão que ele me causara. Por vezes, as primeiras impressões induzem-nos em erro, porque precipitadamente formamos uma opinião, ditada por alheios e laterais factores, que, inevitavelmente, desfocam o objecto da nossa apreciação.
Creio que devia a mim mesmo e a quem me tivesse lido a rectificação que agora aqui submeto a julgamento geral.
Repetita iuvant / As coisa repetidas agradam ( nem todas, claro. )
AV_Lisboa, 22 de Janeiro de 2005
Mantenho, todavia, que a entrevista de José Gil à revista do Público, do passado domingo, carece de objectividade, de concretização, naquilo que pretende exprimir : um desencanto perante a actual vida social dos portugueses, que o autor atribui ao medo que ainda subsiste do tempo da Ditadura de Salazar. Coisa esquisita, se nos lembrarmos que voltámos a viver em liberdade, em 25 de Abril de 1974, e assim temos vivido desde então.
Depois daquela primeira entrevista, o coro de elogios que ouvi da Comunicação Social também me desagradou, porque cada vez mais coisas deste tipo, me soam a mimetismo cultural e ao mero desejo de não querer passar por dissonante.
Sempre que vejo alguém insistir na pesada herança, tanto tempo passado da saída de Salazar do Governo, no longínquo Verão de 1968, acho algo forçado, falho de imaginação e o citado autor, vezes de mais, repisa este tema. Pouco adiantaremos na compreensão das causas do nosso mal-estar, se continuarmos a explorar esse apagado trilho.
Creio que é mais que tempo de deixarmos de culpar Salazar pelos males de que hoje padecemos e antes questionar quem nos tem governado e orientado desde que aquele desapareceu. Algumas referidas chagas dos nossos persistentes males vemo-las hoje até agravadas.
Com efeito, em plena democracia, já outra vez adulta, maior de 21 anos, e depois de termos entrado na União Europeia, em Janeiro de 1986, descobre-se que nunca em Portugal se dedicaram tantas horas de atenção ao Futebol, que é bebido e sorvido nos canais televisivos, nos jornais diários, semanários, generalistas ou ditos de Desporto, que, na prática, quase só tratam de futebol, nas rádios, pública e privadas, em programas intermináveis, horas a fio, a desbobinar banalidades, inutilidades e outras inanidades verbais, sem aparente cansaço dos intervenientes nem dos patrocinadores. Perguntar-se-á se crêem que isso se passe por influência, ainda que oculta e distante, de um omnipotente Salazarismo, ainda que sem Salazar.
Curiosamente, diziam antigamente os intelectuais que era o Salazar que fomentava o interesse do futebol, para promover a alienação, subentendia-se, política e cultural, do povo português, que, assim mesmo, se tornava mais dócil de domar e incapaz de procurar uma alternativa ao regime político de então.
A par disso, o gosto do Fado, cantado de forma dolente, com letras fatalistas, reforçava essa mesma alienação, que, por seu turno, gerava o pretendido sentimento de conformação com a situação de falta de liberdade, como se tudo isso fora uma assumida forma de expiação de algum crime ou condenação colectiva, que tivesse atingido a antiga Nação, de bravos marinheiros e valentes guerreiros, aquela que outrora se batera nos campos de Aljubarrota e embarcara nas Naus e Caravelas, para desbravar esse imenso mar oceano que se perfilava ante seus ansiosos olhos. ( Esta contradição merece ser retomada noutra instância).
Entretanto, com este sentimento ambíguo, a respeito de José Gil, acontece que, a meio da semana, comprei o Jornal de Letras e nele encontro novo grande destaque a mais uma entrevista de JG, coisa que já me causava algum incómodo, pela sistemática referência elogiosa. Desta vez, porém, já me agradou mais o discurso de JG. Há mais objectividade nas suas afirmações e perde menos tempo com as sequelas do salazarismo, apesar de ainda lhes fazer referência.
Algumas suas observações acho-as certeiras, como a de que quase não há debate em Portugal : as pessoas conversam pouco sobre temas importantes e demasiado sobre futilidades, nomeadamente, sobre o futebol, que se tornou um tema esmagador de conversas informais entre nós. Isto, de facto, revela pouca imaginação, escasso interesse cultural ou puro receio de patentear opiniões ou crenças particulares, o que traduz também sentimento difuso de insegurança. Neste pormenor, há um incompreensível mistério que leva as pessoas a desaproveitar o ambiente de liberdade democrática e institucional em que há mais de trinta anos vivemos.
Esta última entrevista de JG ao Jornal de Letras tem passagens muito estimulantes, que justificarão várias exegeses futuras, algumas que até, aqui mesmo, procurarei desenvolver, nomeadamente, quando toca em temas como o paganismo muito presente na sociedade portuguesa, que, tradicionalmente, consideramos inequivocamente católica, a aparente falta de vocação dos portugueses para a Matemática, que JG atribui à nossa preferência pelo saber de síntese, em oposição ao de análise, coisa que fugimos de praticar, até ao tema da possibilidade de Portugal vir a desaparecer, como entidade cultural autónoma.
Este último parece-me deveras oportuno e muito necessário de reflectir, no momento que passa, dentro do enquadramento político e económico em que escolhemos viver, ao aderir à União Europeia, ainda que sem consulta específica ao povo para tão importante decisão histórica. Bem sei que, na altura, quase todos os Partidos a aprovavam, sendo de presumir o resultado positivo da afirmação popular. No entanto, julgo que a natureza da decisão justificava a consulta expressa do povo.
Valeria a pena aprofundar esta questão magna da nossa idiossincrasia, porque se trata de algo repetitivo, cíclico, na nossa História e que subitamente se agravou nos últimos anos, com o europeísmo inebriante das nossas elites elegantes e apressadas, nas suas constantes viagens de avião entre aeroportos cosmopolitas, a par de um reciclado iberismo, que desponta em certos meios, animado por equívocos culturais, protagonizados por quem desvaloriza o que profundamente desconhece.
Simultaneamente, retomei a leitura do livro « Portugal, Hoje – O Medo de Existir » de José Gil, que ganhou em mim um novo e surpreendente interesse, depois da primeira rápida e negativa impressão que ele me causara. Por vezes, as primeiras impressões induzem-nos em erro, porque precipitadamente formamos uma opinião, ditada por alheios e laterais factores, que, inevitavelmente, desfocam o objecto da nossa apreciação.
Creio que devia a mim mesmo e a quem me tivesse lido a rectificação que agora aqui submeto a julgamento geral.
Repetita iuvant / As coisa repetidas agradam ( nem todas, claro. )
AV_Lisboa, 22 de Janeiro de 2005
18.1.05
Encómios Exagerados
A recente entrevista de José Gil ao Público, de 16-01-2005, que li, após ter ouvido várias referências encomiásticas a seu respeito, deixou-me numa situação de inesperada perplexidade. E, se a menciono aqui, faço-o sem qualquer azedume e sem nenhum gáudio também.
Decerto a pessoa em causa terá o seu valor, desenvolvido na área que estudou e sobre a qual tem trabalhado, ao longo da sua vida académica e pessoal, tanto mais que acontece ser ela oriunda da Filosofia, disciplina eminentemente especulativa, que tem gerado muitos vultos do pensamento.
Todavia e para respeito da verdade, terei de declarar aqui urbi et orbi que não consigo ver, pela entrevista, a genialidade anunciada, nem do autor nem da dita entrevista, que tantos elogiaram. Já antes dela, o circunspecto José Pacheco Pereira, no seu famoso Abrupto, havia lavrado uma alta recomendação a um livro de José Gil, saído no final do ano passado, «Portugal, hoje. O medo de Existir», que acabei por comprar e comecei a ler, mas duvido que chegue ao fim, apesar da fina espessura do mesmo, pelo fraco interesse que me despertou.
Já a entrevista, lia-a toda com atenção e a percepção foi semelhante. Parece-me até que José Gil desenvolve, na citada entrevista, um discurso algo confuso, muito baseado nos mitos psicanalíticos, de onde muita garrulice se alimentou, à sombra de Freud, sumidade endeusada por uma corte de inúmeros exegetas, que, assiduamente, tem gravitado entre os Boulevards de St. Michel e St. Germain-des-Près. Infelizmente, estas prestigiadas alamedas hoje já não gozam das presenças abençoadas do seu grande oráculo, Jean Paul Sartre e da sua inseparável e também célebre companheira, Simone de Beauvoir, figuras tutelares de uma intelectualidade francesa bem-pensante, muito referenciada e, normalmente seguida, por largo espectro da esquerda portuguesa e mundial.
Veremos se surgem mais manifestações, dignas de apreço, da capacidade reflexiva do novo ídolo encontrado, para alterarmos a nossa modesta opinião. Até lá, fiquemo-nos com a designada importantíssima entrevista, que, hoje mesmo, ouvi referir, com cópia de elogios, ao Carlos Magno, na sua crónica habitual na Antena 1, da RDP.
Anote-se entretanto, para se perceber melhor a génese da reputação, que a revista Nouvel Observateur publicou, há poucos dias, um número especial dedicado à influência de grandes pensadores actuais, destacando, fora da França, 25 figuras de intelectuais ou artistas, entre elas, o português José Gil, que, a par de Eduardo Lourenço, que assina o artigo sobre José Gil e é, ele mesmo também muito elogiado, em França, onde viveu e leccionou muitos anos, como um eminente pensador da actualidade.
Pergunta ociosa :
- Será porque ambos estudaram, se doutoraram, leccionaram e viveram longos anos, em França, que a revista os destaca desta enfática maneira ?
Distingamos, ainda assim, que Eduardo Lourenço é de facto uma figura de há muito interveniente no debate cultural português e com obra significativa publicada, no campo ensaístico, principalmente, merecedora da nossa natural atenção, ao passo que o mesmo já não se poderá dizer de José Gil, que pouco, até ao presente, se fez notar na vida cultural do país, porventura por legítima opção sua, sem ligação com o mérito ou demérito da pessoa.
Sublinhe-se que não pretendo diminuir o valor intelectual de José Gil, autor que nunca tinha lido antes e de quem apenas conheço as duas peças atrás citadas, insuficientes para dele fazer uma opinião fundada. Se o trago a esta crónica, isso deve-se mais à necessidade de chamar a atenção para uma certa maneira de a nossa Comunicação Social actuar, quando tenciona fabricar novos ídolos intelectuais ou artísticos.
Como frequentemente acontece, a Comunicação Social, por razões às vezes irrelevantes, idolatra determinadas figuras, que depois passam a gozar de um estatuto desproporcionado, em relação aos seus efectivos méritos e obra produzida. Em resultado da desmesurada euforia que a Comunicação Social promove, em torno desses súbitos eleitos, quem não se associa ao coro, logo levantado, corre mesmo o risco de ser considerado um fora-da-lei cultural, de critério errado, votado, por isso, ao ostracismo público.
Já temos visto este fenómeno vezes de mais.
Convém, portanto, adoptar uma atitude de maior prudência, em relação aos encómios atribuídos, sobretudo lá onde o seu objecto ( ainda ) não os justifica.
AV_Lisboa,18-01-2005
Decerto a pessoa em causa terá o seu valor, desenvolvido na área que estudou e sobre a qual tem trabalhado, ao longo da sua vida académica e pessoal, tanto mais que acontece ser ela oriunda da Filosofia, disciplina eminentemente especulativa, que tem gerado muitos vultos do pensamento.
Todavia e para respeito da verdade, terei de declarar aqui urbi et orbi que não consigo ver, pela entrevista, a genialidade anunciada, nem do autor nem da dita entrevista, que tantos elogiaram. Já antes dela, o circunspecto José Pacheco Pereira, no seu famoso Abrupto, havia lavrado uma alta recomendação a um livro de José Gil, saído no final do ano passado, «Portugal, hoje. O medo de Existir», que acabei por comprar e comecei a ler, mas duvido que chegue ao fim, apesar da fina espessura do mesmo, pelo fraco interesse que me despertou.
Já a entrevista, lia-a toda com atenção e a percepção foi semelhante. Parece-me até que José Gil desenvolve, na citada entrevista, um discurso algo confuso, muito baseado nos mitos psicanalíticos, de onde muita garrulice se alimentou, à sombra de Freud, sumidade endeusada por uma corte de inúmeros exegetas, que, assiduamente, tem gravitado entre os Boulevards de St. Michel e St. Germain-des-Près. Infelizmente, estas prestigiadas alamedas hoje já não gozam das presenças abençoadas do seu grande oráculo, Jean Paul Sartre e da sua inseparável e também célebre companheira, Simone de Beauvoir, figuras tutelares de uma intelectualidade francesa bem-pensante, muito referenciada e, normalmente seguida, por largo espectro da esquerda portuguesa e mundial.
Veremos se surgem mais manifestações, dignas de apreço, da capacidade reflexiva do novo ídolo encontrado, para alterarmos a nossa modesta opinião. Até lá, fiquemo-nos com a designada importantíssima entrevista, que, hoje mesmo, ouvi referir, com cópia de elogios, ao Carlos Magno, na sua crónica habitual na Antena 1, da RDP.
Anote-se entretanto, para se perceber melhor a génese da reputação, que a revista Nouvel Observateur publicou, há poucos dias, um número especial dedicado à influência de grandes pensadores actuais, destacando, fora da França, 25 figuras de intelectuais ou artistas, entre elas, o português José Gil, que, a par de Eduardo Lourenço, que assina o artigo sobre José Gil e é, ele mesmo também muito elogiado, em França, onde viveu e leccionou muitos anos, como um eminente pensador da actualidade.
Pergunta ociosa :
- Será porque ambos estudaram, se doutoraram, leccionaram e viveram longos anos, em França, que a revista os destaca desta enfática maneira ?
Distingamos, ainda assim, que Eduardo Lourenço é de facto uma figura de há muito interveniente no debate cultural português e com obra significativa publicada, no campo ensaístico, principalmente, merecedora da nossa natural atenção, ao passo que o mesmo já não se poderá dizer de José Gil, que pouco, até ao presente, se fez notar na vida cultural do país, porventura por legítima opção sua, sem ligação com o mérito ou demérito da pessoa.
Sublinhe-se que não pretendo diminuir o valor intelectual de José Gil, autor que nunca tinha lido antes e de quem apenas conheço as duas peças atrás citadas, insuficientes para dele fazer uma opinião fundada. Se o trago a esta crónica, isso deve-se mais à necessidade de chamar a atenção para uma certa maneira de a nossa Comunicação Social actuar, quando tenciona fabricar novos ídolos intelectuais ou artísticos.
Como frequentemente acontece, a Comunicação Social, por razões às vezes irrelevantes, idolatra determinadas figuras, que depois passam a gozar de um estatuto desproporcionado, em relação aos seus efectivos méritos e obra produzida. Em resultado da desmesurada euforia que a Comunicação Social promove, em torno desses súbitos eleitos, quem não se associa ao coro, logo levantado, corre mesmo o risco de ser considerado um fora-da-lei cultural, de critério errado, votado, por isso, ao ostracismo público.
Já temos visto este fenómeno vezes de mais.
Convém, portanto, adoptar uma atitude de maior prudência, em relação aos encómios atribuídos, sobretudo lá onde o seu objecto ( ainda ) não os justifica.
AV_Lisboa,18-01-2005
16.1.05
Portugal ontem e hoje, outra vez, no Impasse
Poderia bem ser a expressão que melhor define a actual situação política que vivemos, trinta e um anos depois de uma Revolução que se tornara inevitável, pela paralisia que o regime de Salazar-Caetano revelava, ao fim de quase cinquenta anos de domínio político absoluto.
Por uma questão de rigor, nunca lhe chamo regime fascista, apesar de algumas características semelhantes que partilhava com os da Itália, de Benito Mussolini e da Alemanha, de Adolfo Hitler.
Sem descer a minudências, julgo poder defender-se este ponto de vista. Era, sem dúvida, um regime autoritário, que descria e combatia a democracia parlamentar, cujo modelo, na Europa, o Reino Unido, mais que nenhum outro, representava.
Para o classificarmos com as mesmas designações que se usam para os daqueles dois países, sobretudo, nos anos trinta e início dos anos quarenta do século xx, faltam-lhe as movimentações de massas, as elaborações teóricas de partido doutrinado, iluminado e redentor, animado de doutrina nacionalista mais exacerbada, perigosamente conflituante com as demais Nações do xadrez europeu, cujo clima, naquela época, inquinava continuamente, até descambar na confrontação bélica generalizada, em 1 de Setembro de 1939.
É certo que tivemos a Legião Portuguesa, uma espécie de milícia para-militar de recrutamento baseado na fiel identificação ideológica, principalmente dos seus chefes, já que grande parte dos outros militantes de base, aderiam quase só por oportunismo, para lograrem vantagens nos empregos do Estado, sobretudo. Tivemos igualmente uma Polícia Política que perseguia opositores do regime, com particular dureza os Comunistas, a quem votava um ódio quase doentio.
Exercia esta polícia uma especial vigilância no recrutamento dos quadros do regime: Forças Armadas e Militarizadas, Quadros Superiores do Funcionalismo, Professores dos diversos graus de Ensino, Estudantes Universitários e Quadros Sindicais operários. Estas eram as estruturas do Estado em que mais se fazia sentir a acção repressiva do regime deposto em 25 de Abril de 1974.
A sua acção foi abrandando em ferocidade com o avançar dos anos, mas foi muito severa nas três primeiras décadas do regime. Nos anos 60, ainda com Salazar, o regime começava a contemporizar com determinada contestação, não a liquidando brutalmente, como antes, e, no final, de 1968 a 1974, com Marcelo Caetano, a quebra de dureza era notória, com os estudantes e os quadros militares mais jovens a aproveitarem-se disso para lançarem as suas acções de contestação.
Durante toda a década de 60, largas centenas de milhares de portugueses haviam emigrado para a Europa : França, Bélgica, Luxemburgo, Alemanha e Holanda, sobretudo, passando a contactar com sociedades muito mais evoluídas, económica, social e culturalmente. Quando regressavam de férias, ao seu terrunho, exibiam sinais de algum desafogo que incitavam os outros a sair também, imitando-os e descrendo do regime português que pouco conforto económico e social lhes permitia atingir.
Agravando tudo isto, surgiu a Guerra em África, logo em Fevereiro de 1961 e, no final do mesmo ano, a União Indiana invadia e anexava os territórios portugueses de Goa, Damão e Diu, da chamada Índia Portuguesa, pondo fim a uma presença de quase 500 anos, em que de facto se desenvolvera ali uma sociedade algo diferente da do restante continente indiano.
A perda dos territórios indianos assumiu uma forma traumática, na sequência de uma confrontação militar humilhante, pela falta de combatividade demonstrada pelas tropas indo-portuguesas ali estacionadas, em número e equipamentos muito escassos. Com tal desproporção de meios de combate em presença, o Comando português não mostrou grande vontade de resistir, decretando a rendição, logo ao fim do 1º dia de confrontação.
Para Salazar, que exigira ao Governador Geral do Estado Português da Índia, General Vassalo e Silva, comportamento firme, com sacrifício da própria vida, se necessário, devendo as forças indo-portuguesas resistir pelo menos durante oito dias, para permitir ao regime as diligências diplomáticas que o conflito requeria, o rápido epílogo vibrou-lhe um golpe profundo no seu íntimo orgulho de Estadista prestigiado, ainda que sob forte contestação interna e externa.
Surpreendentemente, aquele militar, que antes da invasão consumada, fizera à Imprensa declarações veementes da sua intenção de resistir, algumas até de pura bravata, acabou por claudicar, com pouco combate, tendo apenas a Marinha portuguesa tido comportamento bélico significativo, com o navio Afonso de Albuquerque a responder tenazmente aos ataques da União Indiana, até à sua neutralização operacional, apesar de o seu comandante, Cunha Aragão, ter ficado gravemente ferido, sendo retirado da ponte, continuando a restante guarnição o combate até aos limites do possível.
Morreram a combater o Primeiro-Tenente Oliveira e Carmo e o Alferes Santiago de Carvalho, este, em Damão, num inglório epílogo da nossa histórica permanência em terras da Índia. Foram estas as maiores resistências oferecidas. O resto saldou-se por um fraco comportamento, para o qual se procuraram já várias explicações, ainda assim, pouco convincentes.
Em Portugal, o regime aproveitou o ensejo para agregar a si o povo, fazendo apelo a um sentimento patriótico magoado, com a perda que acabáramos de sofrer. Na verdade, o povo, apesar de experimentar uma situação de falta de liberdade e de exiguidade económica, de alguma forma, sentiu o esbulho dos territórios, que, pese a propaganda indiana, usufruiam de um nível de vida superior ao da restante U. I., mantendo afecto e orgulho na sua especificidade cultural.
Aqui, na Metrópole, a oposição ao regime procurou igualmente tirar dividendos da situação de vexame, em que o regime caíra, pela maneira desonrosa como o confronto ocorrera e, sobretudo, como findara. Mal andou a oposição, porque quem perdera não fora apenas o regime, fora Portugal inteiro, ainda que aquele tivesse agido com falta de perícia e de maleabilidade, não deixando ao conflito outra alternativa que não fosse a guerra.
Mais uma vez se confirmara que a oportunidade em Política é vital para a sorte dos objectivos.
O caso de Goa, todavia, mereceria hoje uma reapreciação minuciosa, desapaixonada, para se perceber o comportamento das diversas entidades envolvidas, portuguesas e estrangeiras, designadamente a ONU, a Inglaterra, nossa aliada desde o longínquo ano de 1386, os EUA e a então União Soviética, alinhada com a Índia em todo o conflito.
Veríamos como aqui não só Salazar se teria de criticar, mas muito mais outros intervenientes, com a sua aura fabricada de paladinos da paz e da concórdia entre as nações, em particular o pandita Nehru, então em luta cerrada com Sukarno e Tito, para se afirmar na chefia do chamado movimento dos não alinhados, uma mais que inventada ficção da URSS para iludir ingénuos ou incautos.
A propósito ainda da actuação Política, com sentido de oportunidade, o mesmo se comprovaria mais tarde, no referente à Guerra de África.
Quando a guerrilha rebentou, com actos de selvajaria impressionantes, naturalmente, a sua repressão teria sempre de ser pronta e rija, para demonstrar que não se aceitariam tais barbaridades. E, de facto, ela assim foi. Mas, depois, haveria que buscar uma forma de solução política para evitar que os actos isolados de explosão de ódio degenerassem numa guerra continuada e desgastante.
Era preciso revelar imaginação e flexibilidade políticas, negociando com as chefias da guerrilha numa posição de força, convidando-as a partilhar a administração dos territórios africanos, admitindo inclusivamente o acesso à auto-determinação e à independência, na base da disputa democrática do poder, de acordo com a doutrina da ONU, que não obrigava a uma única solução política consubstanciada na independência.
Poderia ter-se estabelecido um compromisso legal, com tempo para a formação de estruturas políticas, partidos, etc., até à celebração de eleições livres, em que todos os que viviam nos territórios : brancos, pretos, mestiços, indianos, etc., e lá quisessem continuar a viver, poderiam formar as suas organizações políticas e concorrer às eleições, escolhendo os seus representantes, conforme a sua sensibilidade.
Neste enquadramento e atendendo à época, se a opção fosse a da independência, seria muito provável a vitória de um partido moderado, de composição mista, abrigando nele todas as raças, mantendo com Portugal uma relação de amizade e cooperação económica mutuamente vantajosa. Para isto, era necessário dispor de imaginação, abertura de espírito, alguma habilidade negocial e, acima de tudo, abandonar posições demasiado rígidas, sem possibilidade de sustentação no quadro político do tempo. Foi isto que faltou, essencialmente.
O persistir em posições ultrapassadas, irrealistas, amarradas a um tempo histórico que definitivamente passara, poderia parecer coerência doutrinária, mas, na prática, iria revelar-se desastroso, porque sem possibilidades de defesa.
Por outro lado, foi-se deixando arrastar a guerra, em três teatros operacionais : Angola, Moçambique e Guiné, nestes dois últimos territórios a situação degradou-se bastante com o tempo e, em particular, no último deles, na Guiné, em demasia e sem qualquer justificação, no plano dos ganhos económicos ou materiais. Aqui a perda era completa, em sacrifícios humanos e materiais, de que nunca se recuperaria, aliás, apenas se prosseguindo no esforço, por razões de uma imaginada coerência política, de total impraticabilidade futura.
Em Portugal, o esforço começou ao fim de alguns anos a ser contestado pela juventude universitária, muito politizada e doutrinada na contestação ao regime. Era sobre ela que recaía grande parte desse esforço militar nas matas africanas. A hipocrisia do regime ia aumentando desmesuradamente, porque aceitava já a perda de combatividade guerreira em África, conquanto a situação não se agravasse por aí além. Nos últimos anos, já só as unidades de tropas especiais conduziam acções ofensivas com êxito, permanecendo as outras numa posição predominantemente ocupacional, de presença no território, mas sem carácter agressivo.
Espantosamente, os Altos Comandos e o Governo em Lisboa não se incomodavam com esta preocupante realidade. Pensariam que tudo se manteria nesse status quo, eternamente, enquanto houvesse soldados disponíveis para o sacrifício, de que, aliás, os filhos dos próceres do regime habilmente se isentavam, fazendo uso dos mais variados subterfúgios.
Com este permanente espinho na garganta do regime, que nem a inteligência e o bom senso de Caetano haveriam de arrancar, a solução só poderia sair dos quadros militares profissionais das Forças Armadas, sobretudo dos mais jovens, que sofriam o peso de continuadas comissões, esgotantes, sem fim político no horizonte, e dos oficiais milicianos, também muito penalizados, por arcarem com as missões mais operacionais nas savanas africanas, numa altura em que nas universidades a propaganda anti-guerra e contra o regime atingia o seu auge.
Com efeito, depois do Maio de 1968, a agitação estudantil explodira um pouco por todo o mundo, tornando-se a sua militância política muito radicalizada, levando até, em França, ao enfraquecimento e posterior queda do poder político, com o abandono da cena política do seu grande estadista do século xx, que foi o General Charles de Gaulle.
Se isto era possível num país próspero, economicamente forte e culturalmente avançado, como a França, em Portugal, a contestação estudantil, concertada com a oposição ao regime, crescia também em acção e ousadia. Assim se chegou às vésperas de Abril de 1974, com o regime enfraquecido, por bloqueado e por desacreditado, na sua perspectiva política, sem nada para oferecer, no plano das soluções democráticas em vigor na Europa, para onde maciçamente emigravam os nossos compatriotas, desesperançados de alcançar uma vida digna no seu país.
Com a mudança política revolucionária de 25 de Abril de 1974, a saída do Ultramar deu-se num ápice e em condições atabalhoadas, sem que tivéssemos podido acautelar o interesse das comunidades de portugueses que aí viviam, nem a sorte das populações indígenas que ficaram à mercê de uma propaganda demagógica dos partidos independentistas, todos de orientação comunista, que tudo fizeram para acelerar o processo de transição e de passagem do poder para as suas ávidas e exclusivas mãos.
Incentivou-se, por todos os meios, a saída dos europeus, alguns tão africanos como os negros, porque já contavam com várias gerações de permanência em África. Foi para eles um corte abrupto na sua vida e viriam a enfrentar sérias dificuldades de integração nos primeiros anos após a chegada à sua velha metrópole, para muitos, aliás, inteiramente estranha e, para mais, na época, em clima de forte hostilidade à sua presença, pelas clivagens ideológicas subitamente exacerbadas.
Foi para toda esta gente uma traumática saída das suas terras, onde abandonaram afectos e haveres, sem ganho nenhum para ninguém, a não ser para as cliques revolucionárias que, nesses novos países, acederam ao poder, confiscando e nacionalizando propriedades e toda a sorte de bens, em cumprimento da cartilha ideológica que professavam. Rapidamente os chamados Movimentos de Libertação se guerrearam entre si, em Angola e depois em Moçambique, levando a guerra brutal às cidades, que, ironicamente, nunca a haviam conhecido no tempo da outra guerra, designada de colonial-fascista, no dizer desgrenhado da época.
Esta nova guerra fratricida, muitíssimo mais mortífera e mais economicamente devastadora do que a outra, anterior à independência, levaria à miséria inaudita as populações desses países, que, desamparadamente, sofreram toda a sorte de atrocidades e atribulações nunca antes sonhadas. Tudo isto perante a passividade das instâncias internacionais, tão activamente preocupadas com essas mesmas populações, no tempo da presença portuguesa.
Vê-se hoje claramente como as potências de então (EUA, URSS e China, sobretudo) exploraram cinicamente a credulidade das populações indígenas, acelerando desnecessariamente o acesso desses países à independência, situação para a qual não estavam de modo algum preparados, como alguns nem hoje ainda estão, passados mais de trinta anos das independências africanas, mas para que foram empurrados por mãos criminosas, ávidas de influência, de lucro e de poder estratégico.
Passados todos estes anos, muita gente já se deu conta do logro em que caiu e nesses novos países já ninguém acredita nas antigas ilusões fabricadas pelos acirrados revolucionários da guerrilha, que, comprovadamente, nada mais sabiam fazer do que guerrear.
Procuram hoje esses países, terminada que está a guerra fratricida, retomar a senda do progresso económico, com base numa cooperação com Portugal e com outros países, na base de mútuos interesses e vantagens, sem as desconfianças iniciais.
Portugal, que aderiu à Comunidade Europeia, em Janeiro de 1986, e se deixou embevecer com as ajudas financeiras, vive actualmente uma fase de desorientação e perplexidade, verificando, com amargura, a destruição de valências e estruturas produtivas essenciais para a sua existência como entidade autónoma e soberana, garantia da sua sobrevivência futura.
Daí que a diversificação das nossas relações económicas, nomeadamente, com estes novos países volte a ganhar importância e justifique um cuidadoso estudo da parte das instituições que estão obrigadas a garantir a continuidade da nossa soberania, assente numa nova realidade política, social e económica, mas sem perder de vista o objectivo de que essa realidade deve ser o garante.
A situação, demasiado diagnosticada já, carece de terapia adequada e pronta para administrar, como a um doente quase comatoso.
Quem surgirá das brumas do momento, capaz de nos conduzir para zonas mais claras, no caminho de um país próspero, organizado, produtivo e civilizado, tudo coisas necessárias e inteiramente ao nosso alcance.
Nestes últimos dez, quinze anos, o nosso desenvolvimento foi muito acidentado, registando-se avanços e recuos, a par de equívocos notórios, em variados sectores da vida nacional.
Na parte estritamente política, a degradação é cada vez mais evidente e tem sido sempre possível descer mais um degrau, quando julgávamos ter batido no fundo.
Como iremos sair deste fosso em que continuamente nos temos enterrado e com que gente se dará a ambicionada saída ?
Parece óbvio que aqueles que notavelmente contribuíram para a actual situação, não poderão nunca arvorar-se em salvadores, se têm algum respeito pela nossa inteligência, dado que pela deles já nos mostraram não ter, se aquela têm, afinal.
A partir do próximo acto eleitoral a 20 de Fevereiro, é preciso forjar a sério, com tempo, uma alternativa verdadeira, no campo da social-democracia, que pode passar por uma substancial fragmentação dos dois maiores partidos portugueses, PSD e PS, hoje nas mãos de figuras menores, mediáticas, produto e obra do marketing político, que vivem do acessório e do supérfluo, sem autoridade e respeito para se imporem ao País.
Veremos se para tal se reúne a massa crítica indispensável...
Spes ultima dea /A esperança é a última deusa
AV_Lisboa, 15 de Janeiro de 2005
Por uma questão de rigor, nunca lhe chamo regime fascista, apesar de algumas características semelhantes que partilhava com os da Itália, de Benito Mussolini e da Alemanha, de Adolfo Hitler.
Sem descer a minudências, julgo poder defender-se este ponto de vista. Era, sem dúvida, um regime autoritário, que descria e combatia a democracia parlamentar, cujo modelo, na Europa, o Reino Unido, mais que nenhum outro, representava.
Para o classificarmos com as mesmas designações que se usam para os daqueles dois países, sobretudo, nos anos trinta e início dos anos quarenta do século xx, faltam-lhe as movimentações de massas, as elaborações teóricas de partido doutrinado, iluminado e redentor, animado de doutrina nacionalista mais exacerbada, perigosamente conflituante com as demais Nações do xadrez europeu, cujo clima, naquela época, inquinava continuamente, até descambar na confrontação bélica generalizada, em 1 de Setembro de 1939.
É certo que tivemos a Legião Portuguesa, uma espécie de milícia para-militar de recrutamento baseado na fiel identificação ideológica, principalmente dos seus chefes, já que grande parte dos outros militantes de base, aderiam quase só por oportunismo, para lograrem vantagens nos empregos do Estado, sobretudo. Tivemos igualmente uma Polícia Política que perseguia opositores do regime, com particular dureza os Comunistas, a quem votava um ódio quase doentio.
Exercia esta polícia uma especial vigilância no recrutamento dos quadros do regime: Forças Armadas e Militarizadas, Quadros Superiores do Funcionalismo, Professores dos diversos graus de Ensino, Estudantes Universitários e Quadros Sindicais operários. Estas eram as estruturas do Estado em que mais se fazia sentir a acção repressiva do regime deposto em 25 de Abril de 1974.
A sua acção foi abrandando em ferocidade com o avançar dos anos, mas foi muito severa nas três primeiras décadas do regime. Nos anos 60, ainda com Salazar, o regime começava a contemporizar com determinada contestação, não a liquidando brutalmente, como antes, e, no final, de 1968 a 1974, com Marcelo Caetano, a quebra de dureza era notória, com os estudantes e os quadros militares mais jovens a aproveitarem-se disso para lançarem as suas acções de contestação.
Durante toda a década de 60, largas centenas de milhares de portugueses haviam emigrado para a Europa : França, Bélgica, Luxemburgo, Alemanha e Holanda, sobretudo, passando a contactar com sociedades muito mais evoluídas, económica, social e culturalmente. Quando regressavam de férias, ao seu terrunho, exibiam sinais de algum desafogo que incitavam os outros a sair também, imitando-os e descrendo do regime português que pouco conforto económico e social lhes permitia atingir.
Agravando tudo isto, surgiu a Guerra em África, logo em Fevereiro de 1961 e, no final do mesmo ano, a União Indiana invadia e anexava os territórios portugueses de Goa, Damão e Diu, da chamada Índia Portuguesa, pondo fim a uma presença de quase 500 anos, em que de facto se desenvolvera ali uma sociedade algo diferente da do restante continente indiano.
A perda dos territórios indianos assumiu uma forma traumática, na sequência de uma confrontação militar humilhante, pela falta de combatividade demonstrada pelas tropas indo-portuguesas ali estacionadas, em número e equipamentos muito escassos. Com tal desproporção de meios de combate em presença, o Comando português não mostrou grande vontade de resistir, decretando a rendição, logo ao fim do 1º dia de confrontação.
Para Salazar, que exigira ao Governador Geral do Estado Português da Índia, General Vassalo e Silva, comportamento firme, com sacrifício da própria vida, se necessário, devendo as forças indo-portuguesas resistir pelo menos durante oito dias, para permitir ao regime as diligências diplomáticas que o conflito requeria, o rápido epílogo vibrou-lhe um golpe profundo no seu íntimo orgulho de Estadista prestigiado, ainda que sob forte contestação interna e externa.
Surpreendentemente, aquele militar, que antes da invasão consumada, fizera à Imprensa declarações veementes da sua intenção de resistir, algumas até de pura bravata, acabou por claudicar, com pouco combate, tendo apenas a Marinha portuguesa tido comportamento bélico significativo, com o navio Afonso de Albuquerque a responder tenazmente aos ataques da União Indiana, até à sua neutralização operacional, apesar de o seu comandante, Cunha Aragão, ter ficado gravemente ferido, sendo retirado da ponte, continuando a restante guarnição o combate até aos limites do possível.
Morreram a combater o Primeiro-Tenente Oliveira e Carmo e o Alferes Santiago de Carvalho, este, em Damão, num inglório epílogo da nossa histórica permanência em terras da Índia. Foram estas as maiores resistências oferecidas. O resto saldou-se por um fraco comportamento, para o qual se procuraram já várias explicações, ainda assim, pouco convincentes.
Em Portugal, o regime aproveitou o ensejo para agregar a si o povo, fazendo apelo a um sentimento patriótico magoado, com a perda que acabáramos de sofrer. Na verdade, o povo, apesar de experimentar uma situação de falta de liberdade e de exiguidade económica, de alguma forma, sentiu o esbulho dos territórios, que, pese a propaganda indiana, usufruiam de um nível de vida superior ao da restante U. I., mantendo afecto e orgulho na sua especificidade cultural.
Aqui, na Metrópole, a oposição ao regime procurou igualmente tirar dividendos da situação de vexame, em que o regime caíra, pela maneira desonrosa como o confronto ocorrera e, sobretudo, como findara. Mal andou a oposição, porque quem perdera não fora apenas o regime, fora Portugal inteiro, ainda que aquele tivesse agido com falta de perícia e de maleabilidade, não deixando ao conflito outra alternativa que não fosse a guerra.
Mais uma vez se confirmara que a oportunidade em Política é vital para a sorte dos objectivos.
O caso de Goa, todavia, mereceria hoje uma reapreciação minuciosa, desapaixonada, para se perceber o comportamento das diversas entidades envolvidas, portuguesas e estrangeiras, designadamente a ONU, a Inglaterra, nossa aliada desde o longínquo ano de 1386, os EUA e a então União Soviética, alinhada com a Índia em todo o conflito.
Veríamos como aqui não só Salazar se teria de criticar, mas muito mais outros intervenientes, com a sua aura fabricada de paladinos da paz e da concórdia entre as nações, em particular o pandita Nehru, então em luta cerrada com Sukarno e Tito, para se afirmar na chefia do chamado movimento dos não alinhados, uma mais que inventada ficção da URSS para iludir ingénuos ou incautos.
A propósito ainda da actuação Política, com sentido de oportunidade, o mesmo se comprovaria mais tarde, no referente à Guerra de África.
Quando a guerrilha rebentou, com actos de selvajaria impressionantes, naturalmente, a sua repressão teria sempre de ser pronta e rija, para demonstrar que não se aceitariam tais barbaridades. E, de facto, ela assim foi. Mas, depois, haveria que buscar uma forma de solução política para evitar que os actos isolados de explosão de ódio degenerassem numa guerra continuada e desgastante.
Era preciso revelar imaginação e flexibilidade políticas, negociando com as chefias da guerrilha numa posição de força, convidando-as a partilhar a administração dos territórios africanos, admitindo inclusivamente o acesso à auto-determinação e à independência, na base da disputa democrática do poder, de acordo com a doutrina da ONU, que não obrigava a uma única solução política consubstanciada na independência.
Poderia ter-se estabelecido um compromisso legal, com tempo para a formação de estruturas políticas, partidos, etc., até à celebração de eleições livres, em que todos os que viviam nos territórios : brancos, pretos, mestiços, indianos, etc., e lá quisessem continuar a viver, poderiam formar as suas organizações políticas e concorrer às eleições, escolhendo os seus representantes, conforme a sua sensibilidade.
Neste enquadramento e atendendo à época, se a opção fosse a da independência, seria muito provável a vitória de um partido moderado, de composição mista, abrigando nele todas as raças, mantendo com Portugal uma relação de amizade e cooperação económica mutuamente vantajosa. Para isto, era necessário dispor de imaginação, abertura de espírito, alguma habilidade negocial e, acima de tudo, abandonar posições demasiado rígidas, sem possibilidade de sustentação no quadro político do tempo. Foi isto que faltou, essencialmente.
O persistir em posições ultrapassadas, irrealistas, amarradas a um tempo histórico que definitivamente passara, poderia parecer coerência doutrinária, mas, na prática, iria revelar-se desastroso, porque sem possibilidades de defesa.
Por outro lado, foi-se deixando arrastar a guerra, em três teatros operacionais : Angola, Moçambique e Guiné, nestes dois últimos territórios a situação degradou-se bastante com o tempo e, em particular, no último deles, na Guiné, em demasia e sem qualquer justificação, no plano dos ganhos económicos ou materiais. Aqui a perda era completa, em sacrifícios humanos e materiais, de que nunca se recuperaria, aliás, apenas se prosseguindo no esforço, por razões de uma imaginada coerência política, de total impraticabilidade futura.
Em Portugal, o esforço começou ao fim de alguns anos a ser contestado pela juventude universitária, muito politizada e doutrinada na contestação ao regime. Era sobre ela que recaía grande parte desse esforço militar nas matas africanas. A hipocrisia do regime ia aumentando desmesuradamente, porque aceitava já a perda de combatividade guerreira em África, conquanto a situação não se agravasse por aí além. Nos últimos anos, já só as unidades de tropas especiais conduziam acções ofensivas com êxito, permanecendo as outras numa posição predominantemente ocupacional, de presença no território, mas sem carácter agressivo.
Espantosamente, os Altos Comandos e o Governo em Lisboa não se incomodavam com esta preocupante realidade. Pensariam que tudo se manteria nesse status quo, eternamente, enquanto houvesse soldados disponíveis para o sacrifício, de que, aliás, os filhos dos próceres do regime habilmente se isentavam, fazendo uso dos mais variados subterfúgios.
Com este permanente espinho na garganta do regime, que nem a inteligência e o bom senso de Caetano haveriam de arrancar, a solução só poderia sair dos quadros militares profissionais das Forças Armadas, sobretudo dos mais jovens, que sofriam o peso de continuadas comissões, esgotantes, sem fim político no horizonte, e dos oficiais milicianos, também muito penalizados, por arcarem com as missões mais operacionais nas savanas africanas, numa altura em que nas universidades a propaganda anti-guerra e contra o regime atingia o seu auge.
Com efeito, depois do Maio de 1968, a agitação estudantil explodira um pouco por todo o mundo, tornando-se a sua militância política muito radicalizada, levando até, em França, ao enfraquecimento e posterior queda do poder político, com o abandono da cena política do seu grande estadista do século xx, que foi o General Charles de Gaulle.
Se isto era possível num país próspero, economicamente forte e culturalmente avançado, como a França, em Portugal, a contestação estudantil, concertada com a oposição ao regime, crescia também em acção e ousadia. Assim se chegou às vésperas de Abril de 1974, com o regime enfraquecido, por bloqueado e por desacreditado, na sua perspectiva política, sem nada para oferecer, no plano das soluções democráticas em vigor na Europa, para onde maciçamente emigravam os nossos compatriotas, desesperançados de alcançar uma vida digna no seu país.
Com a mudança política revolucionária de 25 de Abril de 1974, a saída do Ultramar deu-se num ápice e em condições atabalhoadas, sem que tivéssemos podido acautelar o interesse das comunidades de portugueses que aí viviam, nem a sorte das populações indígenas que ficaram à mercê de uma propaganda demagógica dos partidos independentistas, todos de orientação comunista, que tudo fizeram para acelerar o processo de transição e de passagem do poder para as suas ávidas e exclusivas mãos.
Incentivou-se, por todos os meios, a saída dos europeus, alguns tão africanos como os negros, porque já contavam com várias gerações de permanência em África. Foi para eles um corte abrupto na sua vida e viriam a enfrentar sérias dificuldades de integração nos primeiros anos após a chegada à sua velha metrópole, para muitos, aliás, inteiramente estranha e, para mais, na época, em clima de forte hostilidade à sua presença, pelas clivagens ideológicas subitamente exacerbadas.
Foi para toda esta gente uma traumática saída das suas terras, onde abandonaram afectos e haveres, sem ganho nenhum para ninguém, a não ser para as cliques revolucionárias que, nesses novos países, acederam ao poder, confiscando e nacionalizando propriedades e toda a sorte de bens, em cumprimento da cartilha ideológica que professavam. Rapidamente os chamados Movimentos de Libertação se guerrearam entre si, em Angola e depois em Moçambique, levando a guerra brutal às cidades, que, ironicamente, nunca a haviam conhecido no tempo da outra guerra, designada de colonial-fascista, no dizer desgrenhado da época.
Esta nova guerra fratricida, muitíssimo mais mortífera e mais economicamente devastadora do que a outra, anterior à independência, levaria à miséria inaudita as populações desses países, que, desamparadamente, sofreram toda a sorte de atrocidades e atribulações nunca antes sonhadas. Tudo isto perante a passividade das instâncias internacionais, tão activamente preocupadas com essas mesmas populações, no tempo da presença portuguesa.
Vê-se hoje claramente como as potências de então (EUA, URSS e China, sobretudo) exploraram cinicamente a credulidade das populações indígenas, acelerando desnecessariamente o acesso desses países à independência, situação para a qual não estavam de modo algum preparados, como alguns nem hoje ainda estão, passados mais de trinta anos das independências africanas, mas para que foram empurrados por mãos criminosas, ávidas de influência, de lucro e de poder estratégico.
Passados todos estes anos, muita gente já se deu conta do logro em que caiu e nesses novos países já ninguém acredita nas antigas ilusões fabricadas pelos acirrados revolucionários da guerrilha, que, comprovadamente, nada mais sabiam fazer do que guerrear.
Procuram hoje esses países, terminada que está a guerra fratricida, retomar a senda do progresso económico, com base numa cooperação com Portugal e com outros países, na base de mútuos interesses e vantagens, sem as desconfianças iniciais.
Portugal, que aderiu à Comunidade Europeia, em Janeiro de 1986, e se deixou embevecer com as ajudas financeiras, vive actualmente uma fase de desorientação e perplexidade, verificando, com amargura, a destruição de valências e estruturas produtivas essenciais para a sua existência como entidade autónoma e soberana, garantia da sua sobrevivência futura.
Daí que a diversificação das nossas relações económicas, nomeadamente, com estes novos países volte a ganhar importância e justifique um cuidadoso estudo da parte das instituições que estão obrigadas a garantir a continuidade da nossa soberania, assente numa nova realidade política, social e económica, mas sem perder de vista o objectivo de que essa realidade deve ser o garante.
A situação, demasiado diagnosticada já, carece de terapia adequada e pronta para administrar, como a um doente quase comatoso.
Quem surgirá das brumas do momento, capaz de nos conduzir para zonas mais claras, no caminho de um país próspero, organizado, produtivo e civilizado, tudo coisas necessárias e inteiramente ao nosso alcance.
Nestes últimos dez, quinze anos, o nosso desenvolvimento foi muito acidentado, registando-se avanços e recuos, a par de equívocos notórios, em variados sectores da vida nacional.
Na parte estritamente política, a degradação é cada vez mais evidente e tem sido sempre possível descer mais um degrau, quando julgávamos ter batido no fundo.
Como iremos sair deste fosso em que continuamente nos temos enterrado e com que gente se dará a ambicionada saída ?
Parece óbvio que aqueles que notavelmente contribuíram para a actual situação, não poderão nunca arvorar-se em salvadores, se têm algum respeito pela nossa inteligência, dado que pela deles já nos mostraram não ter, se aquela têm, afinal.
A partir do próximo acto eleitoral a 20 de Fevereiro, é preciso forjar a sério, com tempo, uma alternativa verdadeira, no campo da social-democracia, que pode passar por uma substancial fragmentação dos dois maiores partidos portugueses, PSD e PS, hoje nas mãos de figuras menores, mediáticas, produto e obra do marketing político, que vivem do acessório e do supérfluo, sem autoridade e respeito para se imporem ao País.
Veremos se para tal se reúne a massa crítica indispensável...
Spes ultima dea /A esperança é a última deusa
AV_Lisboa, 15 de Janeiro de 2005
9.1.05
Apontamentos Linguísticos Suscitados pelo Maremoto do Sudeste Asiático
A tragédia no sudeste asiático, com o seu cortejo de vítimas humanas, que não tem parado de aumentar, acabou, por arrastamento, por obra dos humanos e não pela mão da natureza, por gerar mais uma vítima, num campo, aparentemente, não relacionado com a catástrofe. Refiro-me ao campo cultural, mais especificamente, ao da Língua Portuguesa, nossa mui excelsa e prezada dama.
Primeiro, logo no que concerne aos termos para designar o fenómeno ocorrido.
Subitamente, os jornalistas portugueses, como amiúde sucede, deixaram-se logo deslumbrar com uma palavra estrangeira, tsunami, que apesar de originária do Oriente, japonesa, nada de extraordinário tem. Designa tão-somente, ao que consta, uma onda de porto, da costa, subentendendo-se, de proporções inusitadas, porque as outras, certamente, não merecerão essa designação.
Durante os primeiros dias, ninguém da Comunicação Social parece ter-se lembrado do nosso velho vocábulo maremoto, com explicação simples, imediatamente compreensível :
maremoto, s.m. (geogr.) grande agitação das águas marítimas por vibrações sísmicas, erupções vulcânicas submarinas e fenómenos de abatimento do fundo que originam ondas solitárias ; invasão da costa e do litoral pela onda solitária devastadora, o m. q. rás de maré ( do lat. mare - , « mar » + motu - , «movimento ),
fornecida aqui pelo excelente, mui prático e generalista, Dic. da LP, da Porto Editora, 6ª Edição, mas que pode igualmente encontrar-se em qualquer outro Dicionário da LP, português ou brasileiro : do Morais, ao do Torrinha, ao do Augusto Moreno, ao do Cândido de Figueiredo, ao do José Pedro Machado, ao da Academia, ao do Aurélio, ao do Houaiss, etc., etc.
Todos dão a definição tradicional de maremoto, com mais ou menos pormenores explicativos, que, como vemos, se ajusta plenamente ao fenómeno ocorrido no sudeste asiático, no passado dia 26 de Dez. do ano que findou.
Os nossos poliglotas jornalistas, porém, não se mostraram satisfeitos com a vulgaridade. Se o fenómeno tinha acontecido na Ásia, haveria que procurar-lhe outro nome e o de tsunami merecia-lhes uma alta receptividade, não só por razões geográficas, mas, quiçá, pela própria eufonia do termo.
Só alguns caturras da blogosfera, principalmente, começaram a levantar a questão da propriedade e da equivalência dos termos, com umas pequenas diferenças de matiz, no máximo, que nunca invalidariam, no caso, o uso do vetusto vocábulo da Língua Portuguesa.
Mas não ficaram por aqui as questões linguísticas suscitadas. Eis que passámos a ouvir falar da ilha de Samatra/Sumatra, das Molucas/Malucas e Ceilão/Sri Lanka, Colombo/Columbo, etc. E aqui as coisas complicaram-se, porque as divergências pareciam mais variadas e as autoridades na matéria mais difíceis de convocar e de acatar.
Em particular, no que se refere a estes dois primeiros termos, logo se revelaram inesperadas autoridades na matéria.
Por ter ouvido e lido tanta coisa errada ou mal explicada, resolvi efectuar uma pequena pesquisa, aqui, pela minha prestimosa biblioteca, que não sendo muito opulenta, abriga já uma quota de saber considerável e, o que é mais consolador, está sempre disposta a fornecer a sua generosa colaboração, nunca se fazendo rogada naquilo em que pode socorrer-me.
Para estas coisas, o google é pouco prestável. Haverá ainda muito trabalho a desenvolver, por parte dos falantes do português, para que ele possa responder às nossas necessidades culturais específicas.
Apesar de ter de memória algumas destas coisas, por as ter ouvido, há muitos anos, da boca de quem muito disto sabe e com quem sempre ganhamos em associar-nos, porque logo, quase sem esforço, fazemos diminuir a nossa quota de ignorância, como, socraticamente, devemos presumir o nosso permanente estado natural, a respeito de muita coisa, por mais estudos que empreendamos.
No caso vertente, refiro-me a um ilustre estudioso destes assuntos histórico-linguísticos, que é o meu mui prezado ex-Professor de Português, o Dr. José Pedro Machado, académico estudioso, ( não é pleonasmo, sobretudo, nos dias de hoje ) de várias prestigiosas instituições, felizmente ainda vivo, com a bonita idade de 90 anos.
Tem larga obra publicada nestas matérias, alguma mesmo pioneira e sem continuadores até ao presente. O seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa veio a público, pela primeira vez em 1952, sofreu várias reedições, mas, que eu saiba, mais nenhum nosso compatriota teve a boa iniciativa de retomar este trabalho de tomo, de então para cá, apesar da proliferação de meios humanos ( Doutores, Mestres, Licenciados ), de equipamentos ( Computadores, Máquinas de Fotocópias, Digitalizadores ) e de verbas (do Ministério da Educação, da Ciência, da União Europeia, da Fundação Gulbenkian, etc. ).
Apenas no Brasil, terra onde não há só telenovelas, samba e futebol, apareceram Dicionários Etimológicos, dando seguimento ao também pioneiro trabalho do grande Mestre Antenor Nascentes, de que J P Machado foi, aliás, amigo dilecto e de cujo trabalho recebeu natural influência.
Há tempo que ando com a ideia de deixar aqui uma singela homenagem a este meu estimado ex-Professor, figura de enorme valor humano, tanto no saber, que é imenso, como no plano ético e no da cidadania, que só a prudência e a modéstia, valores por si cultivados em alto grau, mas com pouca cotação na época actual, têm contribuído para o seu escasso conhecimento popular, apesar da sua diuturna colaboração na imprensa, nacional e regional.
Faltou-lhe, certamente, a consagração da Televisão, para o tornar conhecido do grande público.
Até hoje e depois de tanta futilidade ter sido condecorada, no 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, nunca nenhum Presidente, da nossa desconcertante República, se lembrou de lhe atribuir uma merecida distinção, ele que, até em Camões, tanto estudo investiu, sendo um profundo conhecedor da sua obra.
Em contrapartida, temos visto condecorar, centenas, talvez milhares, de figuras de tão comprovados escassos méritos e duvidoso comportamento ético, excepto na arte de estabelecer compadrios, que, para isso, sempre acham vocação alentada.
Fica, por isso, aqui assumido o compromisso de lhe lavrar um mais que merecido panegírico, em data próxima. Será uma forma de publicamente lhe manifestar o meu grato reconhecimento pela sua benfazeja acção pedagógica, de largo percurso e nas mais variadas tribunas que se lhe ofereceram ao longo da sua felizmente extensa vida.
Quanto aos termos investigados, apurei que a forma escrita geralmente consagrada, pelos vários especialistas e estudiosos que se têm dedicado a estes assuntos, para designar aquela grande ilha do Arquipélago de Sonda, na Indonésia, é Samatra e não Sumatra, aparecendo nesta grafia desde o início do século xvi,i.e., escrita com um a e não com um u.
Em muitos e variados sítios podemos confirmar a maior antiguidade do termo Samatra, desde o referido Dicionário Etimológico de JPM, ao Dic.Onomástico Etimológico da LP, do mesmo autor, à Enciclopédia Luso-Brasileira da Verbo, ao Dicionário de História de Portugal, de Joel Serrão, a uma considerável lista de autores antigos e modernos e respectivas obras, de que citarei apenas os principais :
Começando pelo Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, edição de 1947, da Atlântida, Livraria Editora Lda, de Coimbra, lá vem, na pág. 364, em anotação, a adução de provas do uso antigo e primeiro da grafia Samatra.
Só muito depois, por influência inglesa, que, de o ouvirem da boca de portugueses, certamente, dado que o Português foi, durante o século xvi, uma espécie de «língua franca» de uso geral, naquela parte do mundo, em que quase todos se entendiam, no mercadejar praticado, é que o termo Sumatra, com u, apareceu.
Coisa compreensível, para os ingleses, que, para aproximarem da sua pronúncia o termo que ouviam dos portugueses, assim o grafaram, como sucede com termos prosodicamente semelhantes, como summer, sunday, sun, etc., todos escritos com u e lidos com o som â.
Aí se fica também a saber que o vocábulo aparece logo grafado Samatra, no Livro de Duarte Barbosa, navegador português, que por essas partes do mundo jornadeou no início do séc. xvi.
Em 1516, terminou Duarte Barbosa de escrever esse verdadeiro relato das viagens que empreendeu pelo Índico, onde adquiriu largos conhecimentos, que depois lhe seriam muito úteis, na empresa de Fernão de Magalhães, outro português que, ao serviço de Espanha, haveria de fazer a primeira circum-navegação do globo terrestre, de quem Duarte Barbosa era, aliás, cunhado, tendo sido por ele contratado, juntamente com outros experimentados homens do mar portugueses, para tão arriscada missão.
Desgraçadamente, nessa fantástica viagem, os dois notáveis portugueses viriam sucessivamente a morrer, primeiro Magalhães, depois Barbosa, por forma idêntica, não sem antes deixarem indelevelmente assinalada a sua presença na História dos Descobrimentos Marítimos.
Também o historiador quinhentista, João de Barros, usou, nas suas Décadas, o termo Samatra e não Sumatra, da mesma forma que António Galvão, no seu Tratado dos Descobrimentos, impresso em 1563, Garcia de Resende, na sua Miscelânea, Sá de Meneses, em Malaca Conquistada, Camões, nos Lusíadas, Canto x, est. 124, Fernão Mendes Pinto, na Peregrinação, Manuel Bernardes, na Nova Floresta, etc., etc., tudo autores e obras dos séculos xvi e xvii.
É, por conseguinte, a forma preferida e mais utilizada pela grande maioria dos nossos clássicos, figurando algumas vezes com grafias ligeiramente alteradas - Camatarra, Çamátara e outras - mas com um a inicial.
Modernamente, quase todos os estudiosos que se têm ocupado de assuntos correlatos, em Portugal e no Brasil, têm manifestado a mesma preferência por Samatra : Gonçalves Viana, Cândido Figueiredo, David Lopes, Rebelo Gonçalves, José Pedro Machado, Silveira Bueno, António Houaiss, etc. Estes dois últimos, insignes estudiosos da Língua Portuguesa, ambos brasileiros.
Em particular, Silveira Bueno foi um grande amigo de Portugal e um profundo conhecedor de assuntos nossos, como o provou, nas muitas obras que escreveu, no domínio da Filologia, da Literatura e da História.
Permito-me destacar aqui duas delas : o seu Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa, em 9 volumes, e uma sua edição de «Os Lusíadas», profusamente comentada, com um acervo de conhecimentos anotados, de várias disciplinas complementares ao estudo da obra, nas áreas da Filologia, História Antiga e Moderna, Literatura, Geografia, Mitologia, etc., cuja leitura a todos extraordinariamente enriquece.
Escusado será dizer que, muitas vezes já, consultei ambas as obras sempre com renovado prazer e seguro proveito.
Naturalmente, não pretendo exaurir aqui matérias tão vastas e tão disputadas, nem teria a competência requerida para o fazer, mas apenas veicular o que nelas me parece mais verosímil, daquilo que conheço, permanecendo sempre disponível para corrigir a minha presente opinião, em face de argumentos porventura mais convincentes.
É esta, julgo eu, a única atitude saudável perante o erro, em qualquer domínio do saber em que nos achemos.
Todavia, como o saber é sempre relativo e o silêncio dos mais prudentes estimula a ousadia dos menos preparados, aqui me vejo, nesta incómoda mas excitante situação, de quem sente que está pisando terreno alheio, colhendo onde não semeou e no qual só por puro recreio filosófico, em sentido etimológico, tenho entrado.
Para minha grata satisfação, sinto que já arrecadei algum estimável e consolador pecúlio, que, modestamente, sempre, a todos aqui patenteio.
Ficará ainda para novo «excurso filológico» a dilucidação de termos igualmente disputados, como o do Arquipélago de Maluco, das Ilhas Malucas ou Molucas, do dito elefante Jumbo, da Ilha de Curaçao/Coração, da Florida/Flórida e outras curiosidades, verdadeiras bizantinices para alguns espíritos mais práticos, para uns, porventura mais rombos, para outros.
Pauca sed bona/ Poucas coisas mas boas
AV_ Lisboa, 09 de Janeiro de 2005
Primeiro, logo no que concerne aos termos para designar o fenómeno ocorrido.
Subitamente, os jornalistas portugueses, como amiúde sucede, deixaram-se logo deslumbrar com uma palavra estrangeira, tsunami, que apesar de originária do Oriente, japonesa, nada de extraordinário tem. Designa tão-somente, ao que consta, uma onda de porto, da costa, subentendendo-se, de proporções inusitadas, porque as outras, certamente, não merecerão essa designação.
Durante os primeiros dias, ninguém da Comunicação Social parece ter-se lembrado do nosso velho vocábulo maremoto, com explicação simples, imediatamente compreensível :
maremoto, s.m. (geogr.) grande agitação das águas marítimas por vibrações sísmicas, erupções vulcânicas submarinas e fenómenos de abatimento do fundo que originam ondas solitárias ; invasão da costa e do litoral pela onda solitária devastadora, o m. q. rás de maré ( do lat. mare - , « mar » + motu - , «movimento ),
fornecida aqui pelo excelente, mui prático e generalista, Dic. da LP, da Porto Editora, 6ª Edição, mas que pode igualmente encontrar-se em qualquer outro Dicionário da LP, português ou brasileiro : do Morais, ao do Torrinha, ao do Augusto Moreno, ao do Cândido de Figueiredo, ao do José Pedro Machado, ao da Academia, ao do Aurélio, ao do Houaiss, etc., etc.
Todos dão a definição tradicional de maremoto, com mais ou menos pormenores explicativos, que, como vemos, se ajusta plenamente ao fenómeno ocorrido no sudeste asiático, no passado dia 26 de Dez. do ano que findou.
Os nossos poliglotas jornalistas, porém, não se mostraram satisfeitos com a vulgaridade. Se o fenómeno tinha acontecido na Ásia, haveria que procurar-lhe outro nome e o de tsunami merecia-lhes uma alta receptividade, não só por razões geográficas, mas, quiçá, pela própria eufonia do termo.
Só alguns caturras da blogosfera, principalmente, começaram a levantar a questão da propriedade e da equivalência dos termos, com umas pequenas diferenças de matiz, no máximo, que nunca invalidariam, no caso, o uso do vetusto vocábulo da Língua Portuguesa.
Mas não ficaram por aqui as questões linguísticas suscitadas. Eis que passámos a ouvir falar da ilha de Samatra/Sumatra, das Molucas/Malucas e Ceilão/Sri Lanka, Colombo/Columbo, etc. E aqui as coisas complicaram-se, porque as divergências pareciam mais variadas e as autoridades na matéria mais difíceis de convocar e de acatar.
Em particular, no que se refere a estes dois primeiros termos, logo se revelaram inesperadas autoridades na matéria.
Por ter ouvido e lido tanta coisa errada ou mal explicada, resolvi efectuar uma pequena pesquisa, aqui, pela minha prestimosa biblioteca, que não sendo muito opulenta, abriga já uma quota de saber considerável e, o que é mais consolador, está sempre disposta a fornecer a sua generosa colaboração, nunca se fazendo rogada naquilo em que pode socorrer-me.
Para estas coisas, o google é pouco prestável. Haverá ainda muito trabalho a desenvolver, por parte dos falantes do português, para que ele possa responder às nossas necessidades culturais específicas.
Apesar de ter de memória algumas destas coisas, por as ter ouvido, há muitos anos, da boca de quem muito disto sabe e com quem sempre ganhamos em associar-nos, porque logo, quase sem esforço, fazemos diminuir a nossa quota de ignorância, como, socraticamente, devemos presumir o nosso permanente estado natural, a respeito de muita coisa, por mais estudos que empreendamos.
No caso vertente, refiro-me a um ilustre estudioso destes assuntos histórico-linguísticos, que é o meu mui prezado ex-Professor de Português, o Dr. José Pedro Machado, académico estudioso, ( não é pleonasmo, sobretudo, nos dias de hoje ) de várias prestigiosas instituições, felizmente ainda vivo, com a bonita idade de 90 anos.
Tem larga obra publicada nestas matérias, alguma mesmo pioneira e sem continuadores até ao presente. O seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa veio a público, pela primeira vez em 1952, sofreu várias reedições, mas, que eu saiba, mais nenhum nosso compatriota teve a boa iniciativa de retomar este trabalho de tomo, de então para cá, apesar da proliferação de meios humanos ( Doutores, Mestres, Licenciados ), de equipamentos ( Computadores, Máquinas de Fotocópias, Digitalizadores ) e de verbas (do Ministério da Educação, da Ciência, da União Europeia, da Fundação Gulbenkian, etc. ).
Apenas no Brasil, terra onde não há só telenovelas, samba e futebol, apareceram Dicionários Etimológicos, dando seguimento ao também pioneiro trabalho do grande Mestre Antenor Nascentes, de que J P Machado foi, aliás, amigo dilecto e de cujo trabalho recebeu natural influência.
Há tempo que ando com a ideia de deixar aqui uma singela homenagem a este meu estimado ex-Professor, figura de enorme valor humano, tanto no saber, que é imenso, como no plano ético e no da cidadania, que só a prudência e a modéstia, valores por si cultivados em alto grau, mas com pouca cotação na época actual, têm contribuído para o seu escasso conhecimento popular, apesar da sua diuturna colaboração na imprensa, nacional e regional.
Faltou-lhe, certamente, a consagração da Televisão, para o tornar conhecido do grande público.
Até hoje e depois de tanta futilidade ter sido condecorada, no 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, nunca nenhum Presidente, da nossa desconcertante República, se lembrou de lhe atribuir uma merecida distinção, ele que, até em Camões, tanto estudo investiu, sendo um profundo conhecedor da sua obra.
Em contrapartida, temos visto condecorar, centenas, talvez milhares, de figuras de tão comprovados escassos méritos e duvidoso comportamento ético, excepto na arte de estabelecer compadrios, que, para isso, sempre acham vocação alentada.
Fica, por isso, aqui assumido o compromisso de lhe lavrar um mais que merecido panegírico, em data próxima. Será uma forma de publicamente lhe manifestar o meu grato reconhecimento pela sua benfazeja acção pedagógica, de largo percurso e nas mais variadas tribunas que se lhe ofereceram ao longo da sua felizmente extensa vida.
Quanto aos termos investigados, apurei que a forma escrita geralmente consagrada, pelos vários especialistas e estudiosos que se têm dedicado a estes assuntos, para designar aquela grande ilha do Arquipélago de Sonda, na Indonésia, é Samatra e não Sumatra, aparecendo nesta grafia desde o início do século xvi,i.e., escrita com um a e não com um u.
Em muitos e variados sítios podemos confirmar a maior antiguidade do termo Samatra, desde o referido Dicionário Etimológico de JPM, ao Dic.Onomástico Etimológico da LP, do mesmo autor, à Enciclopédia Luso-Brasileira da Verbo, ao Dicionário de História de Portugal, de Joel Serrão, a uma considerável lista de autores antigos e modernos e respectivas obras, de que citarei apenas os principais :
Começando pelo Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, edição de 1947, da Atlântida, Livraria Editora Lda, de Coimbra, lá vem, na pág. 364, em anotação, a adução de provas do uso antigo e primeiro da grafia Samatra.
Só muito depois, por influência inglesa, que, de o ouvirem da boca de portugueses, certamente, dado que o Português foi, durante o século xvi, uma espécie de «língua franca» de uso geral, naquela parte do mundo, em que quase todos se entendiam, no mercadejar praticado, é que o termo Sumatra, com u, apareceu.
Coisa compreensível, para os ingleses, que, para aproximarem da sua pronúncia o termo que ouviam dos portugueses, assim o grafaram, como sucede com termos prosodicamente semelhantes, como summer, sunday, sun, etc., todos escritos com u e lidos com o som â.
Aí se fica também a saber que o vocábulo aparece logo grafado Samatra, no Livro de Duarte Barbosa, navegador português, que por essas partes do mundo jornadeou no início do séc. xvi.
Em 1516, terminou Duarte Barbosa de escrever esse verdadeiro relato das viagens que empreendeu pelo Índico, onde adquiriu largos conhecimentos, que depois lhe seriam muito úteis, na empresa de Fernão de Magalhães, outro português que, ao serviço de Espanha, haveria de fazer a primeira circum-navegação do globo terrestre, de quem Duarte Barbosa era, aliás, cunhado, tendo sido por ele contratado, juntamente com outros experimentados homens do mar portugueses, para tão arriscada missão.
Desgraçadamente, nessa fantástica viagem, os dois notáveis portugueses viriam sucessivamente a morrer, primeiro Magalhães, depois Barbosa, por forma idêntica, não sem antes deixarem indelevelmente assinalada a sua presença na História dos Descobrimentos Marítimos.
Também o historiador quinhentista, João de Barros, usou, nas suas Décadas, o termo Samatra e não Sumatra, da mesma forma que António Galvão, no seu Tratado dos Descobrimentos, impresso em 1563, Garcia de Resende, na sua Miscelânea, Sá de Meneses, em Malaca Conquistada, Camões, nos Lusíadas, Canto x, est. 124, Fernão Mendes Pinto, na Peregrinação, Manuel Bernardes, na Nova Floresta, etc., etc., tudo autores e obras dos séculos xvi e xvii.
É, por conseguinte, a forma preferida e mais utilizada pela grande maioria dos nossos clássicos, figurando algumas vezes com grafias ligeiramente alteradas - Camatarra, Çamátara e outras - mas com um a inicial.
Modernamente, quase todos os estudiosos que se têm ocupado de assuntos correlatos, em Portugal e no Brasil, têm manifestado a mesma preferência por Samatra : Gonçalves Viana, Cândido Figueiredo, David Lopes, Rebelo Gonçalves, José Pedro Machado, Silveira Bueno, António Houaiss, etc. Estes dois últimos, insignes estudiosos da Língua Portuguesa, ambos brasileiros.
Em particular, Silveira Bueno foi um grande amigo de Portugal e um profundo conhecedor de assuntos nossos, como o provou, nas muitas obras que escreveu, no domínio da Filologia, da Literatura e da História.
Permito-me destacar aqui duas delas : o seu Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa, em 9 volumes, e uma sua edição de «Os Lusíadas», profusamente comentada, com um acervo de conhecimentos anotados, de várias disciplinas complementares ao estudo da obra, nas áreas da Filologia, História Antiga e Moderna, Literatura, Geografia, Mitologia, etc., cuja leitura a todos extraordinariamente enriquece.
Escusado será dizer que, muitas vezes já, consultei ambas as obras sempre com renovado prazer e seguro proveito.
Naturalmente, não pretendo exaurir aqui matérias tão vastas e tão disputadas, nem teria a competência requerida para o fazer, mas apenas veicular o que nelas me parece mais verosímil, daquilo que conheço, permanecendo sempre disponível para corrigir a minha presente opinião, em face de argumentos porventura mais convincentes.
É esta, julgo eu, a única atitude saudável perante o erro, em qualquer domínio do saber em que nos achemos.
Todavia, como o saber é sempre relativo e o silêncio dos mais prudentes estimula a ousadia dos menos preparados, aqui me vejo, nesta incómoda mas excitante situação, de quem sente que está pisando terreno alheio, colhendo onde não semeou e no qual só por puro recreio filosófico, em sentido etimológico, tenho entrado.
Para minha grata satisfação, sinto que já arrecadei algum estimável e consolador pecúlio, que, modestamente, sempre, a todos aqui patenteio.
Ficará ainda para novo «excurso filológico» a dilucidação de termos igualmente disputados, como o do Arquipélago de Maluco, das Ilhas Malucas ou Molucas, do dito elefante Jumbo, da Ilha de Curaçao/Coração, da Florida/Flórida e outras curiosidades, verdadeiras bizantinices para alguns espíritos mais práticos, para uns, porventura mais rombos, para outros.
Pauca sed bona/ Poucas coisas mas boas
AV_ Lisboa, 09 de Janeiro de 2005
2.1.05
Sentimento de Ano Novo
Cá estamos, entrados em 2005, com esperança de que este ano venha a revelar-se de melhor catadura do que o de 2004, fechado com resignado semblante.
No plano político, 2004 foi um desastre para Portugal e para alguns portugueses, que viram minguar, ainda mais, a réstea de orgulho que abrigam no peito, quase só pelas glórias passadas.
No plano económico, continuámos na ilusão da retoma que nos anunciaram que vinha, ali ao dobrar da esquina, mas que, afinal, não apareceu. Sumiu-se, depois do Euro 2004, que esteve quase no papo, mas logrou escapulir-se-nos, ingrato e faccioso, a buscar refúgio no regaço grego, que também nisto nos haveria de ultrapassar.
Objectivamente, foi bom, porque alcançámos o segundo lugar, mas para o nosso imaginário foi escasso, porque estivemos a um passo da glória e deixámo-la fugir, para alguém que considerávamos menos capaz.
Começa a ser irritante. No tempo do Cavaco, a Grécia ainda era a nossa consolação : vinha sempre depois de nós, nas estatísticas económicas.
Na Indústria, também não conseguimos progredir. Dá muito trabalho, é preciso saber alguma ciência, dominar algumas técnicas, conhecer tecnologias. Tudo coisas demoradas de aprender, chatas por sistema, com fórmulas ainda por cima e muito pouco mediáticas. Preferimos construir Grandes Centros Comerciais, para lá colocarmos os produtos importados, que teremos de pagar com língua de palmo.
Criámos mais uns milhares de postos de trabalho precários, com contratos precários, de ordenados enfezados, garantidos por muita mão-de-obra estrangeira, solícita e dócil, fugida de ex-paraísos políticos, de países emancipados, enfim «libertados da exploração europeia», ou de outras terras que, ainda há poucos anos, os portugueses demandavam em busca de sustento ou de aventura.
Muito mudou o mundo, nestes últimos 30 anos e, dizem-nos, nunca fomos tão ricos, tão cercados de bens e de comodidades. Por que experimentamos então esta sensação de incompletude ? Precisaremos do nosso regresso às Serras, como o enfastiado Jacinto, da criação queiroziana ? A explorar em crónicas futuras.
No plano cultural, pouco houve também de exaltante. O Lobo Antunes voltou a não ganhar o Nobel, apesar da prolixa boa imprensa que continuamente o celebra.
Morreu a Sofia, cuja voz já não teremos o prazer de ouvir, dizendo aqueles poemas com odor a mar, vindos lá dos confins das ilhas helénicas, longamente por ela cantadas, com parcimónia de palavras, na exuberância da sua costumada paixão. Com grande fervor Sofia sempre cantou a Grécia, sobretudo a da natureza agreste, limpa, despojada e a das evocações clássicas. Aqui, verdadeiramente, haverá lugar para a saudade, sentimento extraordinário, como sabemos, que Almeida Garrett tão bem definiu em versos lapidares, no seu, hoje quase esquecido, «Camões», Poema em Dez Cantos :
« Saudade ! gosto amargo de infelizes,
Delicioso pungir de acerbo espinho...»,
num encadeado de contraditórios termos e sentimentos, como só um espírito de eleição consegue enunciar.
Po falar em Almeida Garrett, assinale-se a pobreza da comemoração dos 150 anos da sua morte, que quase passaram despercebidos dos múltiplos meios de comunicação social.Quem lhe lerá, hoje, as suas «Viagens na Minha Terra» ou as suas sentidas «Folhas Caídas» ? Quase só se salva, por obrigações curriculares, o seu dramático e algo profético «Frei Luís de Sousa».
Até quando resistirá, nos programas escolares, este clássico do século xix, antes de vir a ser substituído por leitura contemporânea mais fresca, tirada de alguma revista ou jornal da actualidade, com leitura mais condizente com a mentalidade dos novos tempos, que, naturalmente, não tem paciência para textos que obriguem a pensar e a visitar, de vez em quando, o decorativo Dicionário, livro pesado que custa a fazer sair da estante.
Veremos se não levará o mesmo destino do Bernardim Ribeiro, do António Ferreira, do Rodrigues Lobo, do Camões, do Bocage, do Herculano, do Camilo e de outros tantos que tiveram a desdita de escrever, em bom português, obras de pensamento elaborado, coisas, parece, pouco apreciadas nos tempos que correm, mais afeitos ao gosto leve, light, no parlar moderníssimo, que, subitamente, se aprimorou no uso do inglês, cujos termos lhe monopolizam a terrível imaginação criadora.
Ai, Portugal, Portugal, que será de ti, nestes dois próximos anos, de eleições intermitentes, com campanhas eleitorais de afogueadas correrias, por feiras e praças, a beijocar peixeiras e criancinhas de colo, que já quase só estes escalões sociais e etários com elas se excitam, sendo que as peixeiras com algum interesse próprio, materialmente simples e concreto, a que, às vezes, acresce o seu chocarreiro gosto, de malícia estudada.
A hipocrisia política, no entanto, manda enfrentar estas cenas com garbo e nem os Professores Universitários delas ousam desdenhar. Deve ser a isto que eles chamam «combate político», «andar no terreno», a «conhecer o país real».
Quem disto descrer, avisa-se logo, corre o risco de ser classificado de anti-democrático ou favorável a regimes autoritários, se não mesmo a bem pior.
Lá teremos de apelar de novo às nossas reservas de longanimidade cristã, para suportar este melancólico espectáculo, que é Portugal a empobrecer, ou a entristecer, como o via o nosso amargurado Pessoa.
Quousque tandem...
AV_Lisboa_02-01-2005 : Parecem já datas da ficção científica de quando éramos miúdos. 2001, Odisseia no Espaço : onde estás tu ?
No plano político, 2004 foi um desastre para Portugal e para alguns portugueses, que viram minguar, ainda mais, a réstea de orgulho que abrigam no peito, quase só pelas glórias passadas.
No plano económico, continuámos na ilusão da retoma que nos anunciaram que vinha, ali ao dobrar da esquina, mas que, afinal, não apareceu. Sumiu-se, depois do Euro 2004, que esteve quase no papo, mas logrou escapulir-se-nos, ingrato e faccioso, a buscar refúgio no regaço grego, que também nisto nos haveria de ultrapassar.
Objectivamente, foi bom, porque alcançámos o segundo lugar, mas para o nosso imaginário foi escasso, porque estivemos a um passo da glória e deixámo-la fugir, para alguém que considerávamos menos capaz.
Começa a ser irritante. No tempo do Cavaco, a Grécia ainda era a nossa consolação : vinha sempre depois de nós, nas estatísticas económicas.
Na Indústria, também não conseguimos progredir. Dá muito trabalho, é preciso saber alguma ciência, dominar algumas técnicas, conhecer tecnologias. Tudo coisas demoradas de aprender, chatas por sistema, com fórmulas ainda por cima e muito pouco mediáticas. Preferimos construir Grandes Centros Comerciais, para lá colocarmos os produtos importados, que teremos de pagar com língua de palmo.
Criámos mais uns milhares de postos de trabalho precários, com contratos precários, de ordenados enfezados, garantidos por muita mão-de-obra estrangeira, solícita e dócil, fugida de ex-paraísos políticos, de países emancipados, enfim «libertados da exploração europeia», ou de outras terras que, ainda há poucos anos, os portugueses demandavam em busca de sustento ou de aventura.
Muito mudou o mundo, nestes últimos 30 anos e, dizem-nos, nunca fomos tão ricos, tão cercados de bens e de comodidades. Por que experimentamos então esta sensação de incompletude ? Precisaremos do nosso regresso às Serras, como o enfastiado Jacinto, da criação queiroziana ? A explorar em crónicas futuras.
No plano cultural, pouco houve também de exaltante. O Lobo Antunes voltou a não ganhar o Nobel, apesar da prolixa boa imprensa que continuamente o celebra.
Morreu a Sofia, cuja voz já não teremos o prazer de ouvir, dizendo aqueles poemas com odor a mar, vindos lá dos confins das ilhas helénicas, longamente por ela cantadas, com parcimónia de palavras, na exuberância da sua costumada paixão. Com grande fervor Sofia sempre cantou a Grécia, sobretudo a da natureza agreste, limpa, despojada e a das evocações clássicas. Aqui, verdadeiramente, haverá lugar para a saudade, sentimento extraordinário, como sabemos, que Almeida Garrett tão bem definiu em versos lapidares, no seu, hoje quase esquecido, «Camões», Poema em Dez Cantos :
« Saudade ! gosto amargo de infelizes,
Delicioso pungir de acerbo espinho...»,
num encadeado de contraditórios termos e sentimentos, como só um espírito de eleição consegue enunciar.
Po falar em Almeida Garrett, assinale-se a pobreza da comemoração dos 150 anos da sua morte, que quase passaram despercebidos dos múltiplos meios de comunicação social.Quem lhe lerá, hoje, as suas «Viagens na Minha Terra» ou as suas sentidas «Folhas Caídas» ? Quase só se salva, por obrigações curriculares, o seu dramático e algo profético «Frei Luís de Sousa».
Até quando resistirá, nos programas escolares, este clássico do século xix, antes de vir a ser substituído por leitura contemporânea mais fresca, tirada de alguma revista ou jornal da actualidade, com leitura mais condizente com a mentalidade dos novos tempos, que, naturalmente, não tem paciência para textos que obriguem a pensar e a visitar, de vez em quando, o decorativo Dicionário, livro pesado que custa a fazer sair da estante.
Veremos se não levará o mesmo destino do Bernardim Ribeiro, do António Ferreira, do Rodrigues Lobo, do Camões, do Bocage, do Herculano, do Camilo e de outros tantos que tiveram a desdita de escrever, em bom português, obras de pensamento elaborado, coisas, parece, pouco apreciadas nos tempos que correm, mais afeitos ao gosto leve, light, no parlar moderníssimo, que, subitamente, se aprimorou no uso do inglês, cujos termos lhe monopolizam a terrível imaginação criadora.
Ai, Portugal, Portugal, que será de ti, nestes dois próximos anos, de eleições intermitentes, com campanhas eleitorais de afogueadas correrias, por feiras e praças, a beijocar peixeiras e criancinhas de colo, que já quase só estes escalões sociais e etários com elas se excitam, sendo que as peixeiras com algum interesse próprio, materialmente simples e concreto, a que, às vezes, acresce o seu chocarreiro gosto, de malícia estudada.
A hipocrisia política, no entanto, manda enfrentar estas cenas com garbo e nem os Professores Universitários delas ousam desdenhar. Deve ser a isto que eles chamam «combate político», «andar no terreno», a «conhecer o país real».
Quem disto descrer, avisa-se logo, corre o risco de ser classificado de anti-democrático ou favorável a regimes autoritários, se não mesmo a bem pior.
Lá teremos de apelar de novo às nossas reservas de longanimidade cristã, para suportar este melancólico espectáculo, que é Portugal a empobrecer, ou a entristecer, como o via o nosso amargurado Pessoa.
Quousque tandem...
AV_Lisboa_02-01-2005 : Parecem já datas da ficção científica de quando éramos miúdos. 2001, Odisseia no Espaço : onde estás tu ?